Sala de reuniões de Comissões Técnicas no Senado Federal. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado.

Artigo publicado neste sábado (13) no site ConJur, assinado pelo Consultor Legislativo do Senado Federal, João Trindade Cavalcante Filho, mostra a falta de compromisso e a preguiça de alguns parlamentares, integrantes de Comissões Técnicas dos legislativos brasileiros, quando deixam de discutir importantes matérias que, depois, tornam-se leis.

Em várias oportunidades, aqui no Ceará, o jornalista Edison Silva fez críticas às suspensões de sessões plenárias na Assembleia Legislativa para reuniões extraordinárias de Comissões Técnicas examinarem matérias que estão na pauta de votação e não foram apreciadas nas sessões ordinárias dos respectivos colegiados.

O artigo de João Trindade Cavalcante Filho merece uma acurada reflexão dos vereadores, deputados e senadores, assim como nas escolas de Direito, citada por ele.

Tenha uma boa leitura da íntegra do artigo:

Imagine-se que um tribunal processe e julgue uma ação penal, mas resolva dispensar a instrução probatória: é uma fase muito lenta, demorada, ninguém presta mesmo muita atenção nas testemunhas… Seria melhor pular logo para as alegações finais, direto na sessão de julgamento, e passar logo à decisão. “Não se preocupem, é apenas para esta ação, em que há consenso entre os Ministros… É preciso às vezes superar determinadas fases que nada agregam ao julgamento…”, contemporiza a presidência do tribunal. Processualistas em pânico, garantistas em estertores, “é o fim do Estado de Direito!”, grita outro… Silenciosa e sutilmente, é o que vem acontecendo no Legislativo brasileiro, em quase todos os níveis da federação. Infelizmente, não se nota o mesmo espanto quando são as fases do processo legislativo que são subvertidas.

Explica-se. No procedimento comum ordinário, rito padrão de apreciação dos projetos de lei (PL), assim como no procedimento especial das propostas de emenda à Constituição (PEC), a fase parlamentar do processo legislativo abrange a discussão e a votação: a segunda acontece em Plenário, mas a primeira abrange os pareceres das comissões, o emendamento (apresentação de propostas de alteração) e os debates em Plenário. Tem sido cada vez mais frequente, no entanto, a aprovação de requerimentos de urgência, “calendário especial”, “urgência regimental” e assemelhados para, dispensando o pronunciamento de uma ou de todas as comissões, levar a matéria diretamente ao Plenário — onde, a depender da previsão regimental, os pareceres dos colegiados especializados são substituídos por um único “parecer de Plenário”, de autoria de um só parlamentar. Um verdadeiro descalabro em termos de qualidade deliberativa, porque é nas comissões que “o jogo é jogado” de verdade em termos de formação de consenso, debate, participação popular, emendamento, transação… O Plenário não é — e nem deve ser, como adverte Melissa Terni Mestriner [1] — lugar para o debate aprofundado das proposições: foi justamente para verticalizar a análise dos projetos e propostas que se criou o sistema de comissões parlamentares [2], e vale lembrar que o Brasil adota justamente o sistema que mais prerrogativas atribui a esses colegiados especializados [3].

Mais ainda: autores como Manoel Gonçalves Ferreira Filho já apontavam, desde a Constituição de 1967 (inclusive com amparo na experiência italiana), que a etapa das comissões é parte obrigatória do processo de formação das leis [4]. José Afonso da Silva tem a mesma leitura em relação à Constituição de 1988, defendendo que pode mesmo ser extraído do ordenamento constitucional do processo legislativo um “princípio do exame prévio do projeto por comissões parlamentares” [5]. É sintomático, a propósito, que a nossa Constituição, tendo adotado o sistema italiano das comissões fortes, ou deliberantes [6], permite até mesmo que essas substituam o Plenário na votação de projetos de lei (artigo 58, §2º, I) — mas não há indicação expressa de o contrário ser possível. Ainda que se considere ser o pronunciamento das comissões exigência “meramente” regimental (e, portanto, interna corporis, nos termos do Tema nº 1120 da Repercussão Geral do STF [7]) — e que poderia ser, por conseguinte, dispensada por acordo de lideranças —, o “parecer de Plenário” é desastroso para a qualidade deliberativa e, assim, para o processo legislativo em si.

Pesquisa — ainda inédita — de Victor Marcel Pinheiro aponta que aproximadamente 70% dos projetos de lei aprovados pelo Senado Federal e que se converteram em lei seguiram o processo de urgência regimental (artigo 336 do Regimento Interno do Senado Federal), em que é proferido parecer de Plenário em substituição às comissões. Trata-se de um mecanismo perverso: as matérias em que há maior consenso são as mais propensas a ser objeto de requerimento de urgência, e justamente as mais prováveis de ser aprovadas… A tendência é que as matérias com maior probabilidade de se transformarem em lei sejam exatamente aquelas em que há menos debate e apreciação detalhada nas comissões…

Não se trata aqui de tecer uma crítica pessoal aos “relatores de Plenário”, perceba-se. Especialmente no Senado Federal, há uma certa “tradição” de que seja apontado como relator em Plenário o parlamentar que já o era na comissão (geralmente o projeto está pendente de apreciação em um colegiado, quando se apresenta requerimento de urgência que o “encaminha” ao Plenário), o que resulta em pareceres até que suficientemente analíticos [8]. Os problemas são a limitação ao debate, a perda de especialização do colegiado — e, em relação a outras casas, o próprio caráter pobre (para ser bondoso) desses “pareceres de Plenário”. Em outras palavras: a questão é de desenho institucional.

Não é preciso ir muito longe para verificar os efeitos deletérios dessa prática, basta “mudar a cor do carpete” [9]: na Câmara dos Deputados — em que aproximadamente 78% dos projetos de lei apresentados no primeiro ano da última legislatura (2015-2018) não foram objeto de parecer da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania [10] ­—, o resultado dos “pareceres de Plenário” é, numa palavra, desastroso. A questão se torna ainda mais dramática quando se questiona se o “parecer de Plenário” cumpre o papel de analisar a constitucionalidade (formal e material) das proposições. Muitas e muitas vezes esse pronunciamento simplesmente afirma a constitucionalidade da proposição, sem nem sequer haver justificação ou fundamentação. No total, foram registradas, no ano de 2015, 89 situações em que foi proferido parecer de Plenário em substituição a alguma comissão. Na maioria desses casos, o controle de constitucionalidade não foi efetivo, não tendo sido realizada uma efetiva análise sobre a constitucionalidade formal ou material: quando houve substituição do parecer de comissão pelo parecer de Plenário, o controle preventivo de constitucionalidade simplesmente não foi efetivo.

Mesmo no terreno do “carpete azul”, a prática de substituir os pareceres das comissões por um parecer de Plenário derruba a qualidade deliberativa e a efetividade do controle preventivo de constitucionalidade em relação às PECs. Veja-se o paradoxo: justamente em relação às mudanças em tese mais sensíveis (modificações de nível constitucional), a qualidade do debate sobre aspectos constitucionais é significativamente menor, no âmbito do Senado, do que acontece em relação aos projetos de lei — em boa parte, por causa da prática de se adotarem os pareceres de Plenário [11].

Como, em nossas faculdades de Direito (salvo raras exceções), o Poder Legislativo parece não existir, pouquíssimo sabem nossos estudantes e advogados sobre processo legislativo e Legística. Paga-se, uma vez mais, alta conta por essa omissão: o conhecimento dos regimentos (e até mesmo das normas constitucionais pertinentes ao Legislativo) resume-se aos políticos e seus círculos — muitas vezes não se entende a gravidade do que se está fazendo em termos de processo legislativo. Perde-se muito em termos de qualidade deliberativa, custa muito em termos de déficit democrático: é simplesmente desastroso para o processo legislativo se adotar o chamado “parecer de Plenário” em substituição ao pronunciamento das comissões. É muito triste que a academia brasileira não esteja debatendo esse aspecto com a devida atenção.

Com informações do site ConJur.