Desta forma, caberá ao STF definir se a União pode usar ação civil pública para relativizar a coisa julgada com base nos princípios da justa indenização, da moralidade e da razoabilidade, bem como na expressão econômica da demanda. Foto: Reprodução

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça admitiu, nesta quarta-feira (15/6), recurso extraordinário ajuizado pela União e pelo Ministério Público Federal com o objetivo de rediscutir o valor conferido a uma indenização pelo descumprimento de um contrato de venda de árvores a particulares em 1952.

O fator predominante levado em consideração para permitir o envio do processo ao Supremo Tribunal Federal é o valor atualizado que poderá ser pago: R$ 1 bilhão.

Esse montante foi definido em sentença transitada em julgado e mantido em ação rescisória julgada improcedente, mas ainda é contestado pela União e pelo MPF, agora por meio de ação civil pública.

Alegação é de que o valor foi alcançado mediante erro em laudo preparado por perito, e que por isso é abusivo e desproporcional.

Por maioria de oito votos a seis, a Corte Especial concluiu que a definição do caso depende da ponderação de diversos princípios constitucionais. Isso porque a causa está relacionada à defesa do patrimônio publico e possui expressividade econômica suficiente para ocasionar danos ao erário.

Desta forma, caberá ao STF definir se a União pode usar ação civil pública para relativizar a coisa julgada com base nos princípios da justa indenização, da moralidade e da razoabilidade, bem como na expressão econômica da demanda.

70 anos de litígio
O contrato que gerou o litígio foi firmado em 1952, quando a União vendeu, por licitação, terras e árvores no Paraná, prevendo a entrega de 300 mil unidades adultas e nativas, obrigação que não foi cumprida totalmente.

Em 1982, os prejudicados ajuizaram ação ordinária, em que houve condenação de entrega de 200 mil pinheiros, transformada em ordem de pagamento de indenização. Essa primeira ação transitou em julgado em 1991.

Em 1992, a União ajuizou ação rescisória, julgada improcedente em recurso no STJ, cujo trânsito em julgado se deu em 2002. Não satisfeita, a União ajuizou em 2005 uma ação civil pública com o objetivo de declarar a nulidade da decisão proferida na primeira ação ordinária, por erro no laudo que calculou a indenização.

Na ação civil pública, a 4ª Vara Federal do Paraná antecipou a tutela para impedir que a dívida fosse executada pelos particulares, mas o Tribunal Regional Federal da 4ª Região reformou parcialmente a decisão, em agravo de instrumento, permitindo o levantamento de 50% dos valores dos precatórios.

Contra essa decisão, a União ajuizou suspensão de liminar no Supremo Tribunal Federal, em 2007. Inicialmente, a então presidente, ministra Ellen Grace, suspendeu a decisão do TRF-4 até o trânsito em julgado da ACP.

Em 2009, o Plenário do STF reformou em parte a monocrática, permitindo, por fim, o levantamento de até 50% dos valores, descontando a parte que já havia sido paga originalmente pela União.

Em 2019, a ACP foi julgada pelo STJ em recurso especial, no qual a 1ª Turma concluiu pela improcedência do pedido. O voto vencedor destacou que o caso é de inexecução contratual. Portanto, não há possibilidade de relativizar a coisa julgada, tal como o STF admite nos casos de desapropriação.

Ao todo, o Judiciário está há 40 anos lidando com a causa, que trata de uma dívida de 70 anos. Essa demora fez o valor acumulado alcançar a casa do bilhão.

Mais um recurso ao STF
No recurso extraordinário, a União e o MPF alegam que a ação civil pública pode ser utilizada como meio hábil a afastar a coisa julgada em face de ato nulo – o laudo técnico pericial com erro material.

Vice-presidente do STJ e responsável pela admissibilidade de recursos ao STF, o ministro Jorge Mussi entendeu que o envio dos autos à corte constitucional seria inviável, pois o caso não se amolda ao Tema 858 do Supremo (aptidão, ou não, da ação civil pública para afastar a coisa julgada, em particular quando já transcorrido o biênio para o ajuizamento da rescisória).

Além disso, ao julgar o Tema 660, o STF definiu que a suposta violação aos limites da coisa julgada não é matéria a ser analisada pela corte, quando depender da adequada aplicação das normas infraconstitucionais.

“A questão de fundo — o erro material de laudo — já foi objeto neste caso de duas decisões com transito em julgado no STJ”, disse o vice-presidente.

“Não tenho como negar a jurisdição já prestada por essa STJ em duas oportunidades, em caráter definitivo e com trânsito em julgado, para zerar uma lide de mais de meio século e reiniciar, pela terceira vez, o debate a partir de uma nova perícia que será realizada, impugnada e validada por todas as instâncias.

Essa posição foi acompanhada pelos ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell, Benedito Gonçalves e Paulo de Tarso Sanseverino. “Esse processo vai ter que acabar um dia”, pontuou o ministro Og.

“Há quantos anos tramita esse processo?”, indagou o ministro Salomão. “É claro que tem que ficar R$ 1 bilhão. E se levar mais 70 anos, vai ficar R$ 2 bilhões, porque a União não paga e não se conforma. E agora, na admissibilidade do recurso extraordinário, quer rejugar uma causa que já foi julgada, rejulgada e apreciada em rescisória”, criticou.

Valor expressivo
Venceu o voto divergente da ministra Maria Thereza de Assis Moura, que chamou a atenção para as especificidades da causa: o Supremo Tribunal Federal, quando analisou o tema em suspensão de liminar, aventou a possibilidade de valor da condenação estar equivocado e chegou a determinar nova pericia. Com isso, é possível concluir que a indenização pode ser alterada, com a superação da coisa julgada.

Nesse contexto, destacou a ministra, a solução impõe a ponderação de vários princípios constitucionais. “No meu juízo, embora o julgado paradigma do STF no Tema 858 tenha se restringido à causa expropriatória, é de bom alvitre que o STF analise esse caso”, opinou.

O voto divergente foi acompanhado pela maioria, formada pelos ministros Herman Benjamin, Raul Araújo, Isabel Gallotti, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz e João Otávio de Noronha.

“Temos, pelo perito, uma avaliação de 200 mil pinheiros com mesmo valor: o valor máximo. Alguém conhece uma floresta de araucárias com 200 pinheiros todos iguais? Foi isso que levou o STF a dizer: temos que intervir aqui. E interviu mantendo parcialmente a decisão da ministra Ellen Grace na suspensão de liminar”, disse o ministro Herman.

“Eu também não gostaria que o caso fosse ao STF, se eu fosse o particular. Pois lá estão todas as indicações de que esses valores aberrantes não podem ser mantidos. E isso porque se cuida de coisa inexistente: 200 mil pinheiros, todos iguaizinhos. Como a União vai entregar? Nem aqui, nem em lugar nenhum do mundo”, completou.

Fonte: Revista Consultor Jurídico