100% dos munícipios do estado do Ceará participaram dos testes e 4 municípios apresentaram 27 agrotóxicos /Fonte: Dados de 2022 do painel Vigiágua do Ministério da Saúde

Uma mistura de 27 diferentes tipos de agrotóxicos foi detectada na água consumida por parte da população de 210 municípios brasileiros, como São Paulo (SP), Fortaleza (CE), e Campinas (SP). No estado do Ceará todos os municípios participaram do teste, 4 municípios detectaram 27 agrotóxicos na água (Ararendá, Caucaia, Fortaleza e Russas). Em Fortaleza, todos os 27 agrotóxicos foram encontrados na rede de abastecimento da Cagece.

Municípios do estado do Ceará que apresentaram a presença de agrotóxicos na água/ Imagem: Reprodução Repórter Brasil

As informações são resultados de um cruzamento de dados realizado pela Repórter Brasil a partir de informações do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde, com testes feitos em 2022.

A maioria dos exames identificou uma concentração no limite considerado seguro pelo Ministério da Saúde para cada tipo de substância isoladamente. Ou seja, a simples presença de cada agrotóxico em uma amostra não necessariamente acarreta problemas para a saúde.

No entanto, a regulação brasileira não considera os riscos da interação entre os diferentes tipos de pesticidas. É justamente a mistura de substâncias preocupando especialistas ouvidos pela reportagem. Eles afirmam que o chamado “efeito coquetel” pode gerar consequências ainda desconhecidas ao organismo humano.

As detecções ocorreram em amostras de água de diferentes redes de abastecimento nos municípios. Por exemplo, na cidade de São Paulo, cinco agrotóxicos foram encontrados na água da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), responsável por prover a maioria do município.

Já o total de 27 foi verificado em condomínios e empresas da capital paulista com sistemas particulares de tratamento da água. Não houve casos de concentração acima do limite permitido para cada agrotóxico analisado, em São Paulo.

Ministério da Saúde não regula “efeito coquetel”

Enquanto a União Europeia impõe um limite para a presença de diferentes substâncias na água, o risco da mistura é ignorado pela normativa do Ministério da Saúde. A pasta teve a chance de regular essa questão em 2021, quando a nova Portaria de Potabilidade da Água foi aprovada, mas tratou apenas dos limites individuais.

O principal argumento é a dificuldade em calcular os efeitos causados pelas diferentes combinações de substâncias químicas na água.

“O ideal seria não detectar, ou seja, não encontrar nada”, afirma Cassiana Montagner, pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Mas quando há a detecção, ainda que em concentrações menores que o valor máximo permitido, os governos deveriam tomar ações para evitar que esses agrotóxicos apareçam por longos períodos de tempo”, complementa.

Ela destaca que o risco é maior quando o consumo é contínuo, ou seja, quando a presença das substâncias na água persiste ao longo dos meses e anos. Nesses casos, 15 dos pesticidas encontrados estão associados ao desenvolvimento de doenças crônicas como câncer, disfunções hormonais e reprodutivas.

Segundo a pesquisadora, as estações de tratamento não conseguem retirar os agrotóxicos da água na concentração encontrada no Brasil. Assim, a melhor solução é evitar a contaminação.

A origem do problema é o uso excessivo e indevido dessas substâncias, que ocorre em maiores quantidades em regiões rurais, mas também no paisagismo nas cidades.

“Tudo aquilo que vem sendo colocado no ecossistema, solos e plantações, permanece nos recursos naturais e continua presente em diferentes lugares”, alerta Rafael Rioja, coordenador de consumo sustentável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), que faz alerta constantes sobre a presença de agrotóxicos nos alimentos.

Esta não é a primeira vez que dados públicos levantam alerta sobre a presença de diversos agrotóxicos na água. Em 2019, especial feito pela Repórter Brasil, Public Eye e Agência Pública revelou que 1 em cada 4 cidades brasileiras haviam detectado todos os pesticidas na rede de abastecimento – a quantidade de municípios era substancialmente maior porque o levantamento analisou dados de 4 anos, 2014 a 2017.

O que dizem o poder público e as empresas

Questionado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde reconheceu que analisar os agrotóxicos na água individualizadamente é insuficiente para determinar os riscos à saúde da população. Ressaltou, porém, que há poucos estudos que analisam os efeitos da mistura, justificando assim a ausência de valor máximo para o coquetel de substâncias na Portaria atual.

“A temática relativa à mistura de substâncias químicas integra a agenda de trabalho do Ministério da Saúde, inclusive no que se refere à definição do padrão de potabilidade”, afirmou em nota.

O órgão também garantiu que orienta as equipes de vigilância em saúde a adotarem ações preventivas mesmo nos casos em que os testes apontaram a presença de agrotóxicos no limite individual para cada substância. Essa orientação, porém, não parece resultar em medidas objetivas adotadas pelos municípios ouvidos pela reportagem.

As secretarias de saúde de Campinas, São Paulo e Fortaleza, cidades onde os 27 agrotóxicos foram encontrados na água, afirmaram que apenas seguem os parâmetros fixados individualmente para cada substância, segundo a norma do Ministério.

A coordenadora da Vigilância em Saúde de Campinas, Cristiane Sartori, afirma que a secretaria só consegue realizar ações quando os testes apontam que o agrotóxico está acima do limite individual para aquela substância específica.

A Unicamp afirmou que a mistura de substâncias é uma preocupação para a Universidade, mas também se amparou na regulamentação do Ministério da Saúde para justificar a tolerância aos 27 agrotóxicos na água. “É importante salientar que não há ações de controle previstas na legislação quando os valores dos resultados se encontram dentro dos padrões permitidos”.

A secretaria de saúde do município de São Paulo afirmou em nota que monitora a água fornecida à população e que “não foram detectados parâmetros acima do permitido pela legislação vigente”.

Sobre as detecções de cinco agrotóxicos na rede da Sabesp em 2022, a empresa se limitou a afirmar que “todos os ensaios realizados para agrotóxicos estão no padrão estabelecido na Portaria de Potabilidade para água distribuída”. A Sabesp não respondeu às perguntas sobre a mistura de substâncias.

Em Fortaleza, todos os 27 agrotóxicos foram encontrados na rede de abastecimento da Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará), responsável pelo abastecimento de água de 152 municípios do Ceará. Em nota, a Cagece informou que os seus equipamentos de análise possuem alta capacidade de detecção, mas que a concentração de agrotóxicos na água é bem menor do que os limites previstos na legislação, o que faz com que considerem não haver risco à população.

A secretaria de saúde de Fortaleza, responsável pelo monitoramento, não respondeu aos questionamentos enviados pela Repórter Brasil.

Apagão de dados

Os dados do Ministério da Saúde também mostram que 1.609 municípios brasileiros — 6 em cada 10 que fizeram testes — encontraram ao menos um agrotóxico em sua água. O número pode ser ainda maior, já que mais da metade (56%) dos municípios não enviaram dados ou publicaram informações consideradas inconsistentes pelo Ministério da Saúde.

Amapá, Amazonas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rondônia e Roraima estão em um apagão completo de informações, ou seja, não enviaram dados considerados válidos pelo Ministério da Saúde.

Informações da Repórter Brasil