Para Fux, juiz das garantias só poderia ter sido proposto pelo Judiciário. Foto: Nelson Jr./SCO/STF.

O juiz das garantias presume, sem base empírica, a parcialidade do magistrado que atuou durante a investigação para julgar a ação penal. Dessa maneira, viola o princípio da proporcionalidade. Além disso, o mecanismo interfere na estrutura do Judiciário e sua criação só poderia ter sido proposta por tal poder.

Com esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, relator do caso, manifestou-se, na última quinta-feira (22), pela inconstitucionalidade, por diversos aspectos, do juiz das garantias. Fux deverá concluir seu voto na sessão do Plenário da próxima quarta (28).

O ministro Dias Toffoli já adiantou que pedirá vista em seguida. Ele prometeu devolver o processo para julgamento na primeira semana de agosto.

Ao criar o mecanismo, a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019) buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, o juiz das garantias fica responsável pela fase investigatória e o juiz da instrução fica a cargo do andamento do processo e da sentença.

Entre as atribuições do juiz das garantias está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada. A competência do julgador acaba com o recebimento da denúncia ou queixa.

A partir desse momento, o juiz da instrução assume o caso e, em até dez dias, deve reexaminar a necessidade das medidas cautelares impostas pelo juiz das garantias. E o julgador que, na fase de investigação, praticar atos privativos da autoridade policial ou do Ministério Público, ficará impedido de atuar no processo.

Em 22 de janeiro de 2020, um dia antes de a lei “anticrime” entrar em vigor (que havia sido adiada por 180 dias pelo ministro Dias Toffoli), Fux suspendeu a implementação do juiz das garantias. Por mais de três anos, o magistrado não liberou a liminar para análise pelo Plenário — o que gerou críticas de outros ministros. No mês passado, o caso entrou na pauta do Supremo.

Na sessão da última quarta-feira (21), Fux começou a apresentar seu voto e argumentou que suspendeu a implementação do mecanismo por causa da falta de debates sobre o instituto e da impossibilidade de sua implementação em 30 dias, no meio do recesso judicial.

Inconstitucionalidade formal

Nesta quinta, Fux opinou pela inconstitucionalidade de diversos aspectos do juiz das garantias. Sob o prisma formal, o ministro afirmou que a criação do mecanismo violou o pacto federativo. Segundo ele, o inquérito tem natureza jurídica de procedimento, não de processo penal. Assim, é matéria de competência concorrente da União e dos estados, conforme o artigo 24, XI, da Constituição Federal.

Ao regular extensivamente a aplicação do instituto, diz o ministro, a lei “anticrime” invadiu a competência dos estados para dispor sobre suas Justiças, sem atenção às diferenças regionais e de tecnologia.

O magistrado também entendeu que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, “a” e “d”, da Constituição. Tal regra busca proteger o princípio da separação dos poderes, ressaltou. Com esse fundamento, mencionou, o STF barrou a Emenda Constitucional 73/2013, que criava quatro tribunais regionais federais.

Para o ministro, somente lei complementar de iniciativa do Supremo pode dispor sobre o Estatuto da Magistratura. E a lei “anticrime”, proposta pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), interferiu nas regras para a carreira ao estabelecer que o juiz que atua no inquérito fica impedido de julgar o caso.

A jurisprudência do STF, destacou, não valida emendas parlamentares apresentadas durante a tramitação de projetos de lei de iniciativa do Judiciário que gerem impacto orçamentário, como a que criou o juiz das garantias (ADI 4.062).

O relator ainda opinou que a inserção do mecanismo da proposta que culminou na lei “anticrime” violou o devido processo legislativo constitucional. Isso porque a medida foi incluída no projeto após o fim dos debates nas comissões e no grupo de trabalho criado para examinar o pacote apresentado pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

Conforme Fux, não foi apresentado nenhum estudo técnico que justificasse o instituto e indicasse seu impacto. E o processo legislativo não ouviu os entes afetados pela medida — no caso, o Judiciário e os estados.

Presunção de parcialidade

Luiz Fux disse que o juiz das garantias também tem inconstitucionalidade material. O mecanismo, a seu ver, viola o princípio da proporcionalidade. A razão disso é que não aumenta a garantia de imparcialidade dos julgadores. E a legislação já tem regras para assegurar tal postura dos magistrados.

Para o ministro, a existência de estudos empíricos que apontam que humanos desenvolvem vieses cognitivos de confirmação de seus atos não autoriza a presunção generalizada de que todos os juízes do país têm tendência a ser favoráveis à acusação.

“A presunção absoluta do viés de confirmação de decisões pretéritas admite como regra a irracionalidade do juiz, que não tomaria a decisão baseado em dados objetivos, mas se guiaria por vieses. Sou juiz de carreira há mais de 40 anos. Minha primeira decisão foi de absolvição, em um caso de crime sexual, pois não estavam presentes os requisitos para a condenação. A pressuposição de parcialidade é equivocada”, declarou o relator.

A imparcialidade do juiz é uma garantia do jurisdicionado no Estado Democrático de Direito, mencionou o ministro. A proteção, citou, deriva dos direitos fundamentais ao julgamento por autoridade competente (juiz natural), ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa e à vedação a juízo de exceção.

Fux voltou a opinar que o sistema de Justiça já tem mecanismos para coibir abusos. “Quando os atos abusivos são da polícia, temos os juízes de primeiro grau. Quando são do juiz, temos os tribunais de apelação. Quando são dos tribunais, temos os tribunais superiores. Não há juiz das garantias mais eficiente.”

Ele também apontou que o entendimento de que o juiz do inquérito não pode proferir a sentença proibiria desembargadores e ministros que atuam na investigação de participar do julgamento colegiado nos tribunais de segundo grau e superiores.

A instituição do juiz das garantias ainda pode aumentar a duração dos processos e, com isso, gerar impunidade, avaliou Fux.

Debate com Gilmar

O começo da sessão desta quinta teve um debate entre Luiz Fux e Gilmar Mendes. Fux começou a audiência lendo um parecer do ministro aposentado do STF, Carlos Velloso. No documento, o ex-magistrado argumenta que os julgadores brasileiros nunca deixaram de ser garantidores de direitos e sustenta que o juiz das garantias não vai resolver o grande problema do sistema penal, que são as prisões e a execução.

Gilmar interrompeu a fala de Fux e disse que há estudos do Conselho Nacional de Justiça que demonstram que seria viável a implementação do mecanismo sem sua suspensão, como ocorreu com os juizados especiais, criados pela Lei 9.099/1995. “E eu não quero falar que já faz três anos que esse processo está interrompido”, destacou o decano do Supremo.

Fux respondeu que já havia explicado as razões da suspensão do instituto, na sessão de quarta. “Paramos porque era necessário, e é preciso parar mais.” “Então vamos dizer que pare sempre, que não se faça, se é esse o objetivo”, afirmou Gilmar. “O objetivo é enfrentar com responsabilidade os temas, sem torná-los midiáticos”, explicou Fux.

O decano conclamou o colega a julgar o caso de vez, se a matéria é constitucional ou não, tal como o STF fez com a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), uma norma “feita por bêbados”.

“Essa temática foi explorada negativamente de uma tal maneira que tive que explicar as razões [de suspendê-la] a fundo”, explicou Fux.

ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305

Fonte: ConJur