Filomeno Moraes é Cientista Político. Professor Universitário. Doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

“Remisso e sem cuidado algum, […]/Que todo o Reino pôs em muito aperto; […]  esteve perto/De destruir-se o Reino totalmente;/Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.”

Luís de Camões, Os lusíadas

Não é necessário possuir o olfato muito sensível para sentir o odor nauseabundo de golpe a espraiar-se dia a dia. Do desmentido pouco convincente do general Braga Netto sobre o recado ameaçador acerca a não-realização das eleições de 2022 enviado ao presidente da Câmara dos Deputados às diatribes do neo-agitador de caminhoneiros Sérgio Reis pregando a invasão do Supremo Tribunal Federal e a retirada à força dos seus ministros, e à interpelação raivosa (“’Estão prendendo os conservadores e o bonito não faz nada?”) da ex-deputada federal Christiane Brasil depois da prisão do pai, Roberto Jefferson, soma-se o conglomerado – denominado por Carlos Lacerda em outra circunstância golpista – de “imbecis, inocentes úteis, burgueses ignorantes e idiotas etc.”.

E os fatos se sucedem amiúde, levando água para o lanchão golpista. Ora, foi o presidente da República convocando às ruas os seus apoiadores para, no próximo dia sete de setembro, o “provável e necessário contragolpe”. Ora, foi o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, promovendo uma interpretação temerária e interessada do art. 142 da Constituição Federal, invocando um tal poder moderador das Forças Armadas e pontuando que o presidente é o seu comandante supremo.

Bolsonaro não governa, porém não está inerte. Pelo contrário, compraz-se perigosamente em fomentar a subversão pelo alto, em acossar as instituições republicanas, democráticas e representativas, em aproveitar as prerrogativas do seu cargo para levar ao limite o paradoxo da tolerância, isto é, em usar a tolerância própria do Estado do Direito democrático para promover a intolerância. Terceirizou o governo ao Centrão, ente ou estado de espírito de longa sobrevivência, extrema plasticidade e assentado na naturalização patrimonialista. Com certeza, o Centrão tem amor incondicional ao Diário Oficial, acrescido das novas possibilidades de empreendedorismo com as emendas orçamentários e o orçamento secreto. Espera-se que não tenha o mesmo pelo presidente da República.

Não se pode dizer que o Centrão, que reúne políticos conservadores, pragmáticos e profissionais, mais alinhados ao centro político e à centro-direita, faça parte da coalizão golpista. Não manifesta arroubos nostálgicos acerca da ditadura, da tortura, do obscurantismo, e, com certeza, intui que o golpe bolsonarista não levaria o epicentro do poder para Teresina ou Maceió. Todavia, os solavancos institucionais que permite com a investida – na Câmara dos Deputados – de desmantelamento do sistema eleitoral e dos órgãos de controle eleitorais, acabam, no momento, por contribuir para a deslegitimação do processo político. Não há dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, há de se sentar à mesa do banquete de consequências da atuação expansionista do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. Todavia, parece evidente que os dois tribunais, neste momento, não podem ser relativizados na sua atuação frente ao perigo do naufrágio do barco institucional. A tentativa de reforma política em curso na Câmara dos Deputados acaba por soar como incentivo à desordem e ao menoscabo dos prospectos representativos, democráticos e republicanos do sistema político brasileiro.

Cumpre enfatizar que querer golpe não significa automaticamente que vai ter golpe. Por conseguinte, cumpre anular politicamente a arquitetura em andamento das suas condições, prevenindo-se dos curtos-circuitos capazes de provocar desastres institucionais e arranhões no ensaio de democracia e Estado de Direito que a CF/1988 permitiu. Também Bolsonaro devia se cuidar. Há um dito dos anos cinquenta e sessenta, do tempo em que a mídia estava povoada de notícias de generais sedentos de poder político, dito segundo o qual briga de generais se resolve com um churrasco, com evidente prejuízo para o boi. Assim, não é despropositado especular que, acontecendo o golpe com o apoio de generais, um desses, cioso do princípio da hierarquia, entese que não bate mais continência para um capitão… E aí, Jair?

          Por fim, é inevitável lembrar aquele analista de outro golpe que, glosando a sentença hegeliana de que a história não se repete, concluiu que, quando o faz, a primeira vez é tragédia e a segunda, farsa. Aqui, já se teve a tragédia, iniciada em 1964. Agora, é evitar a farsa dos tempos bolsonaristas.

Pós-escrito: 1. O título deste artigo é inspirado no do opúsculo Quem dará o golpe no Brasil?, escrito por Wanderley Guilherme dos Santos e publicado em 1962 pela Editora Civilização Brasileira. Do mesmo escrito foi retirada a citação de Carlos Lacerda. 2. Desdobrando-se em tragédias políticas, foi em agosto que Getúlio Vargas se suicidou, Jânio Quadros renunciou, Juscelino Kubitschek morreu num acidente de automóvel… Neste agosto, embora fumacentos, os tanques já desfilaram pela Praça dos Três Poderes. É preciso ter cuidado com o mês de agosto, que chegou, mas ainda não passou.

Filomeno Moraes – Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Pós-Doutor pela Universidade de Valência (Espanha).