Filomeno Moraes é Cientista Político, professor universitário, Doutor em Direito. Foto: Divulgação.

O título deste artigo é homônimo ao do livro e filme (“The year of living dangerously”) escrito por Christopher Koch e dirigido por Peter Weir, respectivamente, retratando o ano de 1965 na Indonésia, quando começou a derrocada da “democracia guiada” – na verdade, uma autocracia – do presidente Sukarno. Ali, naquele ano, em decorrência de uma tentativa frustrada de golpe de Estado, desatou-se uma onda de violência em que foram assassinadas entre quinhentas mil e um milhão de pessoas, por conta das suas convicções políticas.

No Brasil também, neste ano de 2020 calha bem a expressão “o ano em que vivemos perigosamente”: mais de duzentos mil mortos pela peste da Covid-19, afora, observadas as coisas que mudam, a “morte de que se morre/de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte/de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença/é que a morte Severina/ataca em qualquer idade,/e até gente não nascida)”, na expressão trágico-poética de João Cabral de Melo Neto.

De fato, ao luto pela imensa legião de mortos espalhados por todos os rincões do território nacional e ao medo da morte antecipada, solitária e dolorosa provocados pela pandemia em curso, junta-se a superposição de crises – a econômica, a sanitária, a humanitária, a política -, acarretando um oceano de incertezas e, no limite, a antevisão de um cenário de entropia, para o que as elites políticas, quando não contribuem para o agravamento, não têm sabido encaminhar soluções satisfatórias.

Do ponto de vista político-constitucional, pelo menos três eixos de problemas surgiram ou se agravaram neste “anno terribilis”. Em primeiro lugar, a constante tensão institucional que tem como epicentro a presidência da República, sobretudo pelo pensamento, palavras e ações do seu chefe, no sentido da relativização da letra constitucional e da práxis democrática. De tal modo, não pode deixar de ser entendida, entre outras, a ofensiva contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, cujas respostas institucionais estão longe de constituir reação à altura do discurso e da ação predatória com origem no núcleo do Poder Executivo.

Também causa estupor a renitente campanha de deslegitimação das instituições, como a que se dá contra a probidade da contabilidade eleitoral, com alegações de que a última eleição presidencial foi fraudada e, se não houver voto impresso, fraudulento será o resultado da próxima eleição presidencial.

Além do mais, como traduz matéria da “Folha de São Paulo” (12/12/2020), programas em prol da democracia somem do Orçamento do governo federal, tanto o plurianual (1920-1923) quanto os anuais (a lei orçamentária de 2020 e a proposta de lei orçamentária para 2021). Antes da chegada de Bolsonaro ao poder, dois programas funcionavam no sentido de aperfeiçoar o sistema democrático, a saber, “Democracia e aperfeiçoamento da gestão pública” e “Comunicações para o desenvolvimento, a inclusão e a democracia”. Ambos deixaram de existir nas peças orçamentárias citadas, inexistindo, sequer, o vocábulo “democracia” nos seus textos.

O segundo eixo diz respeito ao papel do presidente da República na prática político-constitucional. Por um lado, e com cuidado lembrando Alberto Torres, o presidente da República deve exercer certo “poder coordenador” no concerto federativo. Evidentemente, a coordenação da dinâmica federativa não diz respeito à diminuição ou extinção da autonomia das unidades subnacionais, mas, à necessidade de uma orquestração de políticas e ações que possam racionalizar os recursos públicos no sentido de realizar metas comuns aos três níveis de governo. Por outro lado, num presidencialismo com alta fragmentação partidária, é esperado um papel proativo por parte do chefe do Executivo para formar uma maioria permanente ou ocasional, sem o que os índices de governabilidade tendem a precarizar-se. O que se viu, no entanto, foi o atual presidente da República inicialmente demitir-se do esforço de formar uma coalizão de apoio no Congresso Nacional, em nome de uma tal “nova política”, porém, ultimamente jogou-se nos braços do Centrão, aderindo sem maiores mediações e explicações à “velha política”. A ver, se a coalizão persistirá e quem dará a direção política da relação Executivo e Congresso.

O terceiro eixo é o atitudinal e diz respeito à aderência ao texto constitucional vigente, respeitando devidamente os princípios do Estado de Direito, republicano e democrático. Talvez, aqui esteja o aspecto mais preocupante da conjuntura perversa, a erosão paulatina, mas constante, das normas jurídicas e das praxes democráticas e republicanas. Tais comportamentos vão da vocalização da existência de um poder moderador atribuído às Forças Armadas à ideia de fechar o Supremo Tribunal Federal, da louvação da ditadura e da tortura à defesa da brutalidade policial, do descaso com a saúde pública e o tratamento impiedoso às consequências da pandemia em curso…

Evidentemente, sem desconhecer as dificuldades inerentes, que só se podem resolver pela política, a esperança é que seja possível ultrapassar o “anno terribilis” de 2020 e construir um “anno admirabilis” em 2021. Apesar do luto e do sofrimento, das tragédias pessoais e coletivas, dos fantasmas recorrentes de 2020, os que continuamos vivos necessitamos encontrar força e ânimo, perseverança e coragem para atender a convocação dos versos de Vinicius de Moraes, na “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”: “Pelas ruas o que se vê/É uma gente que nem se vê/Que nem se sorri, se beija e se abraça/[…]/E, no entanto, é preciso cantar/Mais que nunca, é preciso cantar/É preciso cantar e alegrar a cidade”.

Filomeno Moraes – Cientista Político. Professor Universitário. Doutor em Direito e Livre-docente em Ciência Política. Ex-Professor Visitante na Universidade de Valência (Espanha).