Plenário da CAE quando foi aprovada, em 20 de junho de 2023, a desoneração da folha de pagamentos de 17 setores, enviada em seguida à Câmara dos Deputados
Geraldo Magela/Agência Senado

Das várias diferenças que existem entre o Senado brasileiro de hoje e o dos tempos do Império, a mais visível e marcante é a duração do mandato. Atualmente, cada senador é eleito para atuar por oito anos. No Senado imperial, o político tinha o posto garantido até a morte.

A criação do Senado na letra da lei completa neste mês 200 anos. A determinação constou da primeira Constituição da história do Brasil, outorgada pelo imperador D. Pedro I em 25 de março de 1824. Esse dispositivo constitucional saiu do papel dois anos depois, quando os trabalhos legislativos de fato começaram.

O que a Constituição de 1824 estabeleceu foi que o Brasil teria um Parlamento e ele seria dividido em dois: Câmara dos Deputados e Senado — estrutura básica que se mantém até hoje. Enquanto o mandato dos deputados durava quatro anos, o dos senadores era vitalício.

Por essa razão, era comum que os políticos passassem décadas no Senado. O Marquês de Muritiba (BA), por exemplo, foi senador por 38 anos. O seu tempo no Senado só não foi maior porque ele e todos os demais senadores do Império foram derrubados em 1889 pela República recém-instalada, que também aboliu o caráter vitalício da instituição.

Documentos da época do Império mantidos hoje sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a vitaliciedade dos senadores era controversa e, durante as seis décadas em que vigorou, foi alvo constante de amores e ódios.

Os apoiadores do mandato vitalício argumentavam que ele era necessário para garantir a estabilidade do Brasil.

O senador Saturnino (MT) discursou no início dos anos 1830:

— Eu estou convencido de que a principal utilidade que resulta de ser o Senado vitalício consiste na permanência de suas opiniões, das quais nasce a estabilidade das instituições, sem a qual não pode haver governo estável e sólido.

É por uma razão assemelhada que hoje os senadores, diferentemente dos deputados federais, têm mandato de oito anos e a renovação a cada eleição não é da instituição inteira. Numa eleição, renovam-se dois terços dos senadores. Na eleição seguinte, quatro anos depois, renova-se o terço restante.

Ainda na década de 1830, o senador Marquês de Caravelas (BA) lembrou que existiam movimentos para acabar com o Poder Moderador, que era o quarto Poder e cabia ao monarca, e ao mesmo tempo tornar o Senado temporário, tal qual a Câmara. Para ele, isso seria um erro:

— Ora, senhores, se tais princípios passam, quem governa o Brasil? A Câmara dos Deputados. Que elemento é esse? O democrático. Que governo teremos? O oligárquico. O que se segue dele? A anarquia. Atrás da anarquia, o que vem? O despotismo, porque, depois que os povos veem correr rios de sangue, procuram um homem que os livre do estado de desgraça e que os dirija, e este, aproveitando-se da ocasião, os governa despoticamente, como fez Napoleão.

Na primeira metade do século 19, o adjetivo “democrático” tinha conotação negativa. Remetia, em geral, aos desejos revolucionários e desordeiros do povo.

Outro argumento favorável à vitaliciedade, segundo os papéis históricos do Arquivo do Senado, era que ela garantia independência aos senadores.

Como os senadores se submetiam ao voto popular uma única vez e não precisavam se candidatar à reeleição, eles não tinham que agradar aos eleitores e não ficavam reféns das exigências populares.

A independência dos senadores seria também em relação ao governo. Já que nem mesmo o imperador podia retirá-los do Senado, eles não ficavam obrigados a ceder aos eventuais caprichos do monarca.

Num debate com os colegas, o senador Costa Ferreira (MA) ficou irritado quando foi acusado de “lisonjear o povo”. Ele reagiu:

— Um senador vitalício lisonjear o povo? Pode ser que alguém queira lisonjear o poder, porque assim pode obter favores. Porém o povo? O que pode pretender um senador do povo? É por esse lado que vêm males à nação. Quanto a mim, posso afoitamente dizer que nunca bajulei nem o povo, nem o poder, e que sempre disse a verdade como entendia.

O senador Visconde de Cairu (BA) concordou que os senadores não eram submissos aos desejos populares. Para ilustrar a independência, ele citou a Lei Feijó, aprovada pelo Parlamento em 1831, que proibiu a importação de escravizados africanos:

— Clama-se e declama-se sem cessar que a opinião pública reclama reformas da Constituição, mas a mesma mal intitulada opinião pública é a que antes bradava que se perdia o Brasil sem a contínua importação da escravatura da África, com que se tentou transformar a Terra da Santa Cruz [Brasil] em Etiópia. Honra do Senado é no ano passado opor-se a tão espúria opinião pública e organizar a lei rigorosa contra os traficantes de sangue humano. É espetáculo glorioso o ver-se em certas épocas poucos homens oporem-se a milhões.

A Lei Feijó, contudo, acabaria sendo descumprida e ganharia a alcunha de “lei para inglês ver”. O tráfico de escravizados só foi de fato abolido duas décadas mais tarde.

O argumento da vitaliciedade como garantia da independência do Senado ganhava ainda mais força quando se lembrava que a Câmara podia ser dissolvida pelo imperador a qualquer momento, com a convocação de nova eleição. Isso significa que, na prática, o mandato dos deputados nem sempre chegava aos quatro anos.

O sistema de governo no Segundo Reinado foi parlamentarista, e o primeiro-ministro, fosse ele do Partido Conservador, fosse do Partido Liberal, só conseguia governar se contasse com a maioria da Câmara. Quando isso não ocorria e faltava governabilidade, a solução era dissolver a Câmara e recomeçar a partida política do zero, com novos deputados e novo primeiro-ministro.

A historiadora Andrea Slemian, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do livro Sob o Império das Leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (Hucitec Editora), explica que, no momento em que a Constituição de 1824 nasceu, prevendo o Senado vitalício, o mundo estava sacudido por ideias liberais e revoluções que puseram em xeque o absolutismo monárquico.

As mais emblemáticas foram a Revolução Francesa, iniciada em 1789, e a Revolução Haitiana, deflagrada logo em seguida. Em Paris, o rei absolutista foi guilhotinado. No Haiti, colônia francesa no Caribe, os escravizados de origem africana se rebelaram, massacraram os brancos, tomaram o poder e se declararam uma nação independente.

As ideias liberais, por sua vez, pregavam que o poder não podia mais ficar nas mãos de uma única pessoa, mas ser limitado pela Constituição e pelos Poderes Legislativo e Judiciário.

— Em resposta a isso, movimentos de moderação política entraram em cena. A ideia de adotar a monarquia constitucional no lugar da monarquia do Antigo Regime teve como objetivo conter as alternativas revolucionárias, inclusive sublevações populares, que ameaçassem a ordem e derrubassem os governos. É por isso que nesse momento a palavra “democracia” é praticamente um xingamento. A Constituição outorgada por D. Pedro I era, sim, liberal, já que acabou com o modelo tradicional de monarquia vigente até o governo de D. João VI, mas precisou trazer elementos conservadores, entre os quais o Senado vitalício, para salvaguardar a ordem e o governo imperial — afirma Slemian.

Outro aspecto que reforçava o caráter moderador do Senado era o modo como os políticos se elegiam. A escolha final não cabia totalmente aos eleitores. Uma lista tríplice, com os mais votados na província, era remetida ao imperador, que escolhia livremente o novo senador vitalício. No caso dos deputados, não havia lista tríplice, e os eleitos eram escolhidos pelas urnas.

Como naturalmente buscava a estabilidade, o imperador sempre escolhia senadores moderados.

A historiadora da Unifesp diz que a manutenção da ordem foi a grande prioridade do Império até os anos 1840 porque a nação independente demorou a se consolidar. Inúmeras revoltas, inclusive separatistas, como a Confederação do Equador, na década de 1820, e a Revolução Farroupilha, iniciada na década de 1830, mostravam que o Brasil corria o risco real de se esfacelar a qualquer momento.

As vizinhas ex-colônias espanholas, mergulhadas em guerras civis após se declararem independentes, sugeriam o caos que poderia se instalar no Brasil.

— Um dos momentos de maior desassossego foi quando D. Pedro I abdicou e o Brasil ficou sem imperador, já que D. Pedro II era uma criança — continua Slemian. — A abdicação deixou o futuro do Império incerto porque outros projetos de Brasil, diferentes do projeto de D. Pedro I, surgiram com força nesse momento. O Senado desempenhou um papel decisivo na manutenção do projeto em vigor, tanto na instalação e na condução da Regência quanto na antecipação da maioridade de D. Pedro II.

Fonte: Agência Senado