Nos últimos meses, o Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho têm divergido frequentemente na polêmica sobre terceirizações, pejotizações e outros tipos de contrato de trabalho não regidos pela CLT. Ministros da Corte Constitucional vêm anulando muitas decisões de tribunais trabalhistas que reconhecem o vínculo de emprego em situações do tipo.

Decisões monocráticas recentes de magistrados do Supremo validaram, por exemplo, contratos não celetistas entre motoristas e empresas de transporte ou plataformas intermediadoras. Outro caso comum é o da relação entre escritórios e advogados autônomos ou associados.

Tais decisões são tomadas em reclamações constitucionais e se baseiam principalmente no julgamento de repercussão geral que reconheceu a possibilidade de terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social.

Reclamações e mais reclamações
O professor e advogado trabalhista Ricardo Calcini, sócio diretor do escritório Calcini Advogados, destaca que o sistema jurídico atual “possibilita o acesso muito rápido e fácil ao STF, via reclamação constitucional, com um custo irrisório”.

José Roberto Dantas Oliva, advogado e juiz do Trabalho aposentado, concorda que “está se alargando demasiadamente a via estreita da reclamação, que estava se tornando sucedâneo de recurso”.

Para ele, tais reclamações são movidas indevidamente, em casos nos quais a Justiça do Trabalho não invalidou a terceirização ou outras formas de divisão de trabalho entre pessoas jurídicas, mas apenas reconheceu a fraude nessas relações. Ou seja, não há desrespeito à jurisprudência do STF.

Soberania da Justiça do Trabalho
“A competência — exclusiva — para decidir sobre isso sempre foi do Judiciário Trabalhista”, ressalta Oliva. “Se para chegar a um resultado desses o juiz do Trabalho teve de analisar incidentalmente uma relação jurídica subjacente, declarando-a fraudulenta, nada muda. Se o pedido é de reconhecimento da natureza empregatícia do vínculo, ele é o único juiz competente”.

A visão do magistrado aposentado é semelhante à da advogada trabalhista Fabíola Marques, sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas e professora da PUC-SP. “Não é a Justiça do Trabalho que não está aplicando os precedentes do Supremo. Na verdade, é o STF que está invadindo a competência da Justiça do Trabalho”, indica ela.

Segundo a advogada e professora, a confusão ocorre porque a pejotização só é válida se não houver pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Se estiverem presentes tais requisitos, descritos na CLT, somente a Justiça do Trabalho poderá dizer se há uma relação de emprego.

Em outras palavras, a “transferência da responsabilidade do exercício de uma determinada atividade para outra empresa” é plenamente possível. Mas, para que a terceirização seja válida, o prestador de serviços não pode, por exemplo, ter horários e reuniões a cumprir, ou mesmo obrigação de atender a determinados clientes, sem poder recusar. Nesses casos, considera-se que, na prática, a terceirização não existiu.

Assim, de acordo com Fabíola, quando a Justiça do Trabalho invalida uma terceirização, não há contestação à possibilidade de execução da atividade-meio ou da atividade-fim da empresa. O que ocorre, na verdade, é a constatação dos elementos que caracterizam a relação de emprego regida pela CLT.

“A Justiça do Trabalho deve e a ela cabe, em cada reclamação trabalhista na qual se pede o vínculo de emprego, verificar se estão presentes os requisitos da relação de emprego”, explica o advogado, professor e procurador regional do Trabalho aposentado Raimundo Simão de Melo.

“Mesmo que haja a alegação de um contrato de terceirização, de um contrato de advogado com uma sociedade de advogados, de uma pejotização ou de qualquer outra forma de trabalho, se verificar presentes os requisitos da relação de emprego, a tendência da Justiça do Trabalho é reconhecer o vínculo”, destaca ele.

Para o advogado, no entanto, “deve ser analisado cada caso concreto”, pois tanto a Justiça do Trabalho quanto o STF podem cometer equívocos.

Ricardo Calcini também aponta que muitos dos casos levados ao Supremo discutem “o vínculo empregatício por conta de fraude”. Por isso, “não necessariamente se enquadram nos precedentes vinculativos” fixados pela corte.

O advogado trabalhista Lívio Enescu ressalta que “o debate no Supremo se dá quanto à discussão se a terceirização lícita da atividade-fim é válida ou não”. Já em casos julgados pelo Tribunal Superior do Trabalho, discutiu-se a terceirização ilícita, usada como fraude ao sistema celetista.

Para ele, “essas incursões no STF não podem permitir o reexame do que foi decidido pelos tribunais trabalhistas”. Recentemente, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo, teve o mesmo entendimento em decisão monocrática (Rcl 61.438).

Ainda conforme Enescu, “a Justiça do Trabalho guarda o seu lugar específico e de protagonista para julgar e processar as ações oriundas da relação de trabalho”, como expresso no artigo 114 da Constituição. “Qualquer tipo de subversão a essa poesia constitucional é golpe”, completa ele.

A decisão de Zanin, diga-se de passagem, não foi a única. Oliva afirma que “as coisas já começaram a mudar”. Ele lembra que a lógica de manter decisões trabalhistas reconhecedoras do vínculo de emprego com base nos requisitos da CLT também foi seguida recentemente pelos ministros Luiz Fux (Rcl 56.098 e Rcl 57.133) e Kassio Nunes Marques em decisões monocráticas. Já a ministra Cármen Lúcia votou nesse sentido na Rcl 59.841, embora tenha ficado vencida no julgamento da 1ª Turma.

Desapego à reforma
Por outro lado, o advogado trabalhista Paulo Sergio João, professor da PUC-SP e da FGV, vê o TST “seguindo o padrão de suas decisões anteriores à reforma trabalhista, que mantinham uma rejeição às novas formas de relações do trabalho”. A corte entende que “a proteção da legislação trabalhista é a única capaz de oferecer garantias ao trabalhador”.

João, no entanto, destaca que a reforma “transformou as relações de trabalho ao permitir que o trabalhador, utilizando-se da autonomia da vontade, pudesse escolher a modalidade jurídica do contrato”.

Segundo ele, o STF vem seguindo tal diretriz da reforma. Assim, “as divergências existentes entre os dois tribunais decorrem de uma visão mais protecionista do TST”.

Do site Conjur