Dino pregou que é essencial atualizar os processos decisórios do Estado, de modo que eles passem a acompanhar de maneira mais eficiente as demandas da sociedade.Foto: Reprodução

A crise democrática que tem afetado diversos países em todo o planeta foi tema do debate “Riscos para o Estado de Direito e Defesa da Democracia“, promovido na última segunda-feira (26), primeiro dia do XI Fórum Jurídico de Lisboa, evento que terminará na próxima quarta (28).

Na abertura do encontro, o moderador da mesa, Rodrigo Mudrovitsch, destacou um paradoxo recente: a esperança depositada nas cortes constitucionais como contraponto ao viés destrutivo de governos eleitos de maneira democrática.

Mudrovitsch — que é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos — também destacou o papel das cortes regionais de direitos humanos na defesa da democracia e citou resultados obtidos em intervenções recentes, como a que ocorreu na Nicarágua.

Participaram do debate o ministro da Justiça, Flávio Dino; o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas; a provedora de Justiça portuguesa, Maria Lúcia Amaral; o advogado e ex-presidente do Conselho Federal da OAB Marcus Vinicius Furtado Coêlho; e a professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná Estefânia Maria de Queiroz Barboza.

Em sua fala, Dino elencou cinco riscos à democracia e ao Estado de Direito. O primeiro é a mudança da hegemonia global dos Estados Unidos para os países asiáticos. “Estamos num momento de transição de hegemonia econômica e política que desafia o próprio conceito derivado das revoluções liberais dos séculos 17 e 18”, sustentou o ministro.

O segundo risco é o paradigma material sobre o qual se assentam os pactos políticos que suportam a democracia representativa. Nesse sentido, valores individualistas acirram a competição e rompem laços de confiança interpessoal, sem os quais não se sustenta a própria ideia de nação.

A crescente influência das redes sociais na imposição de gostos e formação de pensamento por meio de manipulação algorítmica é o terceiro risco. Já o quarto é a capacidade cada vez maior dos mercados de se autorregular, desafiando a soberania estatal. Nesse caso, o ministro observou que essa influência vem sendo exercida não apenas por mercados lícitos, mas também pelos ilícitos.

Por fim, Dino listou a crescente polarização política como quinto risco: “Será que o extremismo não vai ganhar vida própria a ponto de se naturalizar e se tornar o paradigma dominante? Talvez estejamos vivenciando o fim da convergência ao centro”.

Para neutralizar esses riscos, Dino pregou que é essencial atualizar os processos decisórios do Estado, de modo que eles passem a acompanhar de maneira mais eficiente as demandas da sociedade.

Ele também defendeu as prerrogativas regulatórias dos Estados. “Não podemos abrir mão da ideia de regulação. Proibir alguém de vender um rim é censura? Não. É disciplinar a liberdade para protegê-la. Do mesmo modo, me parece que certas práticas devem, sim, ser reguladas, na medida do possível”, defendeu ele, citando como exemplo as redes sociais.

Judicialização da política

Em sua participação, o governador Tarcísio de Freitas apontou um excesso de judicialização daquilo que é decidido pelo legislador. Ele também defendeu a ideia de que as crises são geradas a partir do momento em que o Estado é incapaz de solucionar conflitos sociais, o que dá margem ao oportunismo e ao autoritarismo.

Tarcísio destacou ainda a importância de providenciar mecanismos de apuração e efetivação da vontade do povo nas decisões políticas fundamentais do Estado.

“Essa é uma oportunidade de promover uma reforma política para que a gente não viva a crise de representatividade, que é um risco do Estado democrático de Direito. Precisamos ter uma representação mais orgânica, mais pura, mais plena, onde o cidadão se sinta de fato representado.”

Confiança nas instituições

Maria Lúcia Amaral, por sua vez, destacou a importância de incutir na sociedade a confiança nas instituições de Estado. Ela explicou que isso tem se tornado cada vez mais difícil por causa da mudança promovida pela tecnologia no debate público: “O diálogo direto de todos contra todos, de todos entre todos, em tempo real, instantâneo, tem produzido uma opinião pública profundamente transformada. Essas alterações estão provocando uma erosão profunda em todas as instituições”.

Exclusão social

Por sua vez, Marcus Vinicius Furtado Coêlho apontou como um dos riscos à democracia a exclusão social: “O Estado de Direito não pode ser algo das elites. Não podemos falar somente em democracia formal, como o direito de votar, temos de falar em democracia material, voltada a toda a população.”

O advogado também apontou o abuso de poder como uma das mazelas das democracias contemporâneas e citou o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — preso pelo consórcio da “lava jato” às vésperas da eleição de 2018 — como exemplo.

Outro problema, para ele, é a falta de regras claras: “A sociedade necessita saber quais regras estão prevalecendo, sem segurança jurídica não se sabe quais são as regras existentes, e o julgador não pode retroagir seu novo entendimento aos fatos pretéritos.”

Neoconservadorismo

Estefânia Barboza falou sobre a problemática relação entre a religião e a política: “Algumas religiões têm se colocado como antagônicas ao projeto constitucional ou de direitos humanos”.

Ela defendeu a necessidade de rever a discricionariedade que é dada aos agentes políticos na nomeação para cargos públicos, para evitar a cooptação de órgãos que vão funcionar como meios de contenção nas mudanças de governos.

O evento

Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)

Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.

Confira aqui a programação completa

Fonte: ConJur