Professor e cientista político, Filomeno Moraes. Foto: Ares Soares/Divulgação.

[…] cresce sem freios a mais perversa das nostalgias: a nostalgia do medo, do ódio e do silêncio.

Paulo Miyada

Um dia treze de dezembro, o de 1968, deve ser sempre lembrado pelos brasileiros no sentido de proclamar solenemente: Ato Institucional nº 5, nunca mais. De fato, naquele treze de dezembro se editava talvez o mais ignominioso documento da história do autoritarismo brasileiro, tornando, na expressão do jornalista Elio Gaspari, a “ditadura envergonhada” na “ditadura escancarada”.

Dos cinco generais-presidentes que se sucederam com a derrocada da ordem constitucional em abril de 1964, três tiveram o AI-5 como instrumento de governo, a saber, Costa e Silva, Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Com respaldo “jurídico” nos seus dispositivos, interpretados extensivamente, a sanha persecutória atingiu civis e militares, parlamentares e burocratas, magistrados, inclusive, três ministros do Supremo Tribunal Federal, até que, passados dez anos provocando destroços institucionais, fosse revogado por fadiga de material.

Contra a brutalidade do ministro da Justiça, Gama e Silva, o “mandar às favas os escrúpulos de consciência” do ministro Jarbas Passarinho e o silêncio obsequioso de vários dos circunstantes, expressos na reunião ministerial de 13 de dezembro de 1968, Pedro Aleixo, o vice-presidente da República, opôs-se à edição do ato institucional. Ponderou que a violência se desenvolveria em cadeia, do presidente da República até o guarda da esquina. De fato, a violência do AI-5 foi além das hipóteses que capitulara, o que já era uma cavalar dose de autoritarismo, tornando o mando mais despótico ainda e desencadeando uma onda coercitiva que impregnou o Estado e o tecido social, com reverberações perversas mesmo depois de revogado. A propósito, ano passado, baseado em exposição homônima, a Fundação Tomie Ohtake editou artisticamente um livro, mostrando o que foi a tragédia do AI-5, com o acautelador, ou amedrontador, título “AI-5 50 anos: ainda não terminou de acabar”.

Dissecadas por diversas análises racionais ou apaixonadas, os resultados das eleições de 2018 têm alguns consensos, como o da prevalência da antipolítica, o da guinada do eleitorado à direita, o da escolha de um presidente da República situado na extrema-direita do espectro ideológico. Desde a campanha eleitoral, e reafirmada a partir do início do novo governo, assiste-se no país a uma escalada da boçalidade política, do discurso do ódio, da marcha à ré na afirmação do país como ator relevante no cenário internacional, do desprezo pela ciência e pela cultura, do retrocesso na política ambiental, tudo a par do elogio do autoritarismo, da ditadura militar, dos torturadores. Prevalece, pois, uma das autobiografias do país, o dos grotões, o do desprezo pelas luzes do conhecimento, o dos instintos mais primários, que a reconstitucionalização e a reinstitucionalização democrática tinham como alvo ultrapassar. Na verdade, prevalece a tentativa de desconsolidar o ensaio de democracia constitucional que se desenvolve no país, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim, parece claro que, para a liderança oriunda do pleito de 2018, é insuficiente a violência disseminada do AI-5, tomando corpo a ideia da necessidade de um seu revigoramento explícito.

Talvez se possa dizer que, mesmo revogado na passagem do governo Geisel para o Governo Figueiredo, o espírito do AI-5 é o reprimido que diuturnamente sufoca a sociedade brasileira, no momento com a morbidez das suas misérias habituais acrescida da morbidez da peste da Covid-19, que, em um ano já ceifou a vida de quase duzentas mil pessoas. Os valores do progresso, da tolerância, da laicidade são sempre sobrepujados pelo conservadorismo imobilizador ou pelo reacionarismo, a ojeriza à alteridade e o encantamento do mundo. Uma das maiores economias do mundo apraz-se em boa medida no cultivo da violência de classe, de gênero, de raça, de orientação sexual, advinda da polícia, das milícias, das facções.

A promessa constitucional da construção de uma sociedade livre, justa e solidária se esvai a cada dia. Às vezes, é inevitável pensar que a democracia como “um lamentável mal-entendido” passou sem maiores mediações para a democracia da “pós-verdade”. De todo o modo, resta algum consolo lembrar a asseveração de um personagem de Alberto Camus, em “A peste”: “Isto não pode durar, é demasiadamente estúpido”.

Filomeno Moraes – Cientista Político. Professor Universitário. Doutor em Direito e Livre-docente em Ciência Política. Ex-Professor Visitante na Universidade de Valência (Espanha).