Professor Filomeno Moraes Foto: Ares Soares – JPG

O envelope ideológico que sobrescritou a recente carta de intenções do golpe no Brasil – com o ápice no 8 de Janeiro – teve como ponto de destaque a pretensa hermenêutica do art. 142 da Constituição Federal, enfatizando a existência de um tal poder moderador cuja titularidade pertenceria às Forças Armadas. Não é necessário muito esforço para demonstrar a irresponsabilidade, insensatez e perversidade do argumento, a embutir, tão-somente, os propósitos autoritários dos golpistas e o menoscabo à letra e ao espírito do esforço constituinte de 1987/1988.

De fato, desde a Constituição de 1891 o poder moderador foi banido do constitucionalismo nacional. No entanto, o país viveu durante toda a evolução político-constitucional ou sob o tacão do poder moderador ou amedrontando pelo seu fantasma. José de Alencar, o pai, envolveu-se decisivamente na Confederação do Equador (de modo especial na experiência cearense), a tentativa republicana e federalista a contrapor-se à violência contra a primeira Assembleia Constituinte, a outorga da primeira constituição e a inserção do quarto poder no texto do projeto imperial e, depois, no texto constitucional. Na verdade, o grande constitucionalista da Confederação do Equador, o frei Caneca, “na época o maior constitucionalista do País” (no dizer de Paulo Bonavides), com ideias e armas, verberou as nascentes absolutistas da futura Carta […]”, porque considerava o “o Poder Moderador […] a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”.

Depois, José de Alencar, o filho, um dos mais agudos observadores do seu tempo, já apostrofava no Parlamento a experiência do Segundo Reinado, acentuando que, relativamente às “alforrias” em que deveria haver empenho, estava “a alforria do País, cativo do absolutismo, cativo da prepotência do Governo pessoal”. De outra parte, o sistema representativo no Império foi assim caracterizado no sorites de Nabuco de Araújo: “[…] o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar Ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo no nosso país!”

Entre os subsídios apresentados à Assembleia Constituinte de 1933/1934, deve ser destacado o de Borges de Medeiros, que anexou um anteprojeto detalhado de constituição no livro “O Poder Moderador na república presidencial”. Em confronto com a concepção castilhista de República, de que tinha sido o artífice mais continuado, Borges de Medeiros agora afirmava que, “o rol do presidente consistirá em presidir a República como o seu primeiro ‘magistrado’, e não como o seu primeiro ‘leader político’”, pelo que, “separado dos poderes executivo, legislativo e judiciário, ele constituirá o quarto poder do Estado, o poder moderador da República”. A proposta não vingou. O que veio, logo depois, foi a ditadura do Poder Executivo, a do Estado Novo.

No que diz respeito ao Brasil emerso das eleições de 2018, em que a boçalidade política ganhou terreno, tentando, inclusive, anular conquistas da modernidade e da civilização, a falação reiterada, com “animus” doutrinador, sobre a natureza e a titularidade de um redivivo poder moderador, que não encontra respaldo nem na letra nem no espírito da
Constituição Federal de 1988, nem na tradição constitucional republicana.

Entre generais e usuários das redes sociais do entorno bolsonarista, bem como de palavras do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, tudo animado por alguns pareceres jurídicos, cresceu o alvoroço em relação à tese de que cabe às Forças Armadas “moderar” as crises dentre os poderes do Estado.

Assim, na afirmação do constitucionalismo democrático brasileiro acabou por prevalecer o repúdio à restauração do poder moderador, com a certeza de que não há na ordem político-constitucional brasileira poder moderador, quem quer que seja o titular. Nem as Forças Armadas nem o Ministério Público nem o Supremo Tribunal Federal. O resto é cuidar da realização da separação dos poderes do Estado brasileiro, com a complexidade que os tempos atuais requerem. Pois, como já afirmava Montesquieu, ao encarecer que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário “deveriam formar um repouso ou uma inação”, todavia, “como em virtude do movimento necessário das coisas, eles são obrigados a seguir, serão também forçados a seguir em comum acordo”.
Filomeno Moraes Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).