Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

Geraldo Alckmin acrescentou aos seus quefazeres presidenciais interinos, vice-presidenciais e ministeriais o de teórico da política, contribuindo com o conceito de “harmonia agitada” (“Correio Braziliense”, 17 abr. 2024) à tão comentada – principalmente a partir da edição de “Do espírito das leis”, de Montesquieu, nos meados do século XVIII – teoria da separação de poderes.

“Harmonia agitada” é, na verdade, o eufemismo alckiminiano para o confuso relacionamento entre o Poder Executivo e a presidência da Câmara dos Deputados, a mostrar como muito problemática a versão Lula.3 do presidencialismo de coalizão. De um lado, um governo sem uma base razoavelmente estável na Câmara dos Deputados; de outro, uma Câmara sedenta de recursos orçamentários, com o comportamento inversamente proporcional ao “é dando que se recebe”, pois dá menos do que recebe. Questionado se ainda há harmonia entre o Executivo e o Legislativo, Alckmin respondeu tangencialmente que “sempre tem. Ela é agitada, mas tem”.

De fato, a tensão entre a presidência da República e a presidência da Câmara se acentuou com o episódio da demissão, por pressão do MST, de um primo de Arthur Lira (PP-AL) do cargo no Incra de Alagoas, com a interferência do Executivo na manutenção da prisão do deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ), com a quizília com o ministro das Relações Institucionais (quer, dizer as queixas contra a liberação controlada dos recursos orçamentários de interesse do presidente da Câmara). A resposta, ou a vingança, se deu com derrotas governistas no Congresso, a ameaça da instauração de comissões parlamentares de inquérito, enfim, todo um “pacote de maldades”, umas já vindas e outras por virem.

Evidentemente, está-se diante de uma crise política entre as duas presidências, a da República e a da Câmara dos Deputados, cuja solução deve encaminhar-se politicamente. E Lula e Lira têm bastante saber político na experiência acumulado bem como bastante astúcia política, própria dos diabos velhos políticos que são, que lhes proporcionam condições para conduzir a caravela institucional por mares menos procelosos. A busca da tal “harmonia agitada”, a que se referia Alckmin, em proporções palatáveis.

Todavia, há um problema de fundo. Os tempos bolsonaristas fomentaram perigosamente a subversão pelo alto, acossando as instituições republicanas, democráticas e representativas.  Assistiu-se ao malbaratar do sistema político pelas palavras e ações do Poder Executivo, principalmente por parte do ex-presidente da República, para quem a democracia tem sentido instrumental e a separação de poderes é obstáculo à realização de uma política ultraconservadora, anticiviliza­tória e anticonstitucional.  Afinal, o governo Bolsonaro acabou terceirizado ao Centrão, ente ou estado de espírito de longa sobrevivên­cia, de extrema plasticidade e assentado na naturalização patrimonia­lista. Com certeza, o Centrão tem amor incondicional ao Diário Ofi­cial, acrescido das novas possibilidades de empreendedorismo com as emendas orçamentários e o orçamento secreto.  Como resultado, mudanças atitudinais e institucionais tornaram o Congresso Nacional com mais poder de peitar o Executivo.

O processo histórico provocou, como anota a literatura, a emergência    de novas formas institucio­nais que não podem ser categorizadas como legislativas, judiciais ou executivas, com um conjunto diferente de desafios normativos. Mas, parece que a razão maior ainda está com Montes­quieu, que, no capítulo IV do livro XIV de O espírito das leis, encarece que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário “deveriam formar um repouso ou uma inação”. Todavia, “como em virtude do movimento necessário das coisas, eles são obrigados a seguir, serão também for­çados a seguir em comum acordo”. No Brasil de hoje, a tarefa dificílima é, por conseguinte, tornar tal “comum acordo” factível republicana, democrática e representativamente.

Pós-escrito: No debate político em curso, soa como elogio ao apedeutismo, na véspera do Dia Mundial do Livro, a ordem dada pelo presidente da República ao seu ministro da Fazenda: “Haddad tem que perder horas no Senado e na Câmara em vez de ler livro” (“O Globo”, 23 abr. 2024). “Em vez” de tanta coisa, Lula elegeu tragicamente a não-leitura! Na contramão, sugere-se a leitura da coletânea “Desafios do sistema político brasileiro”, organizado  por Bernardo Sorj e Sérgio Fausto e recentemente publicado.

 

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).