Filomeno Moraes é Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Pós-Doutor pela Universidade de Valência (Espanha). Foto: Ares Soares.

A Onça Caetana levou, no último domingo, Francisco Corrêa Weffort. Lenda da mitologia dos cariri paraibanos, romanceada por Ariano Suassuna no Ao sol da Onça Caetana, dá conta de que, da furna sertaneja e pedregosa onde mora, a Onça Caetana acorda sob a forma humana de mulher e, quando escolhe um homem para matar, aparece a ele entre delírios e prodígios. O certo é que, de pouco mais de dois meses para cá, lançou as suas garras especialmente sobre o pensamento político brasileiro, carregando, além de Weffort, Leôncio Martins Rodrigues, Gláucio Ary Dillon Soares, Roberto Romano e José Arthur Giannotti.

Em certa ocasião, Guillermo O’Donnell salientou que Weffort era quem mais entendia a política deste Brasil, país de complexidade tal que não poupa as veleidades arrogantes e vaidosas de intérpretes presunçosos, ingênuos e desavisados, fazendo tábula rasa dos edifícios explicativos construídos em areias movediças. Ao longo da sua longa carreira acadêmica, desenvolvida fundamentalmente a partir da Universidade de São Paulo, Weffort foi uma máquina pensante, produtora em escala de ideias e interpretações, diagnósticos e projetos sobre o país. Destrinçou muitos nós teóricos e, por meio da pesquisa empírica, lançou luz sobre muitos temas – escuros por conta da ignorância ou obscurecidos em razão dos vieses ideológicos – como a democracia, o pensamento político, a transição do autoritarismo e, último porém não o menor, o populismo. De fato, pensou o Brasil político moderno, o que surge da Revolução de 30 e desemboca nos dilemas dos nossos dias, e mais teria feito ainda, se, em alguns momentos, a ciência como vocação não lhe tivesse sido obnubilada pela política como vocação.

Decerto, os estudos weffortianos sobre a democracia, enfeixados, sobretudo, nos livros Por que democracia? e Qual democracia? foram seminais, tanto pelas conclusões apresentadas quanto pelos veios abertos para as novas pesquisas. Todavia, talvez, os mais relevantes dos muitos relevantes estudos de Weffort, foram os contidos na coletânea O populismo na política brasileira, publicada em 1978 e, desde então, em sucessivas edições. Contra o discurso que raiou o preconceito, em boa medida oriundo da intelligentsia paulista, foi Weffort quem penetrou mais profundamente, às vezes de forma impiedosa, no território do populismo, vislumbrando as suas deficiências e proficiências. Lançou luz sobre o populismo à direita de Jânio Quadros e Adhemar de Barros, entretanto, lançou mais luz ainda sobre o populismo à esquerda de Getúlio Vargas. Retirando das sombra a figura de Vargas –  talvez o mais capitalista dos presidentes brasileiros, que veio para os seus, mas os seus não compreenderam – possibilitou o entendimento correto do seu papel na construção do Estado nacional brasileiro. Afinal, o capitalismo só poderia sobreviver se, ao tempo em que existisse um conjunto de produtores dados à tarefa do empreendimento econômico e lucrativo, existisse uma classe trabalhadora sobre a qual não recaíssem os constrangimentos  próprios da escravidão.

Weffort compreendeu muito bem que o populismo varguista possibilitou a construção de um Estado que, momentaneamente, pairou sobre a luta de classes, não para negá-la, mas como uma solução capaz de evitar-lhe os  aspectos disruptivos. Na verdade, bem ressaltou, datado historicamente e, por conseguinte, incapaz de se repetir, o Estado populista era um Estado de compromisso de classe que, no momento mais tenso do processo de substituição de importações, buscava a realização do compromisso entre a burguesia de extração nacional e o proletariado urbano-industrial, tudo no sentido da consecução de um projeto de desenvolvimento capaz promover a libertação econômica e política em relação à doutrina, com os seus desdobramentos, do presidente norte-americano James Monroe, qual seja, a América para os americanos (do norte).

Recentemente, em parceria com José Álvaro Moises, veio à luz o e-book Crise da democracia representativa e neopopulismo no Brasil (Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2020), no qual Weffort assinou a segunda parte do volume (Brasil: democratização social e democracia política), dissertando sobre o populismo e o neopopulismo. Sobre este, ressalta que “temos hoje Jair Bolsonaro, um arremedo do populismo do passado”, em que “alguns comentaristas viram nele uma espécie de reminiscência de Jânio”. Ressalta Weffort que, assim como Jânio em sua vitória presidencial tomou muito votos da herança getulista, pode-se admitir que a vitória de Bolsonaro seria impraticável se não aliciasse muitos dos votos da herança lulista”. Bolsonaro seria, pois, uma guinada do populismo à direita, em que parte dos seus votos seriam anti-Lula e outra parte, de eleitores de Lula.

Weffort foi um timoneiro teórico e prático capaz de proporcionar rumo, nos mares procelosos do neopopulismo, em que o Brasil navega perigosamente na atual conjuntura. De todo o modo, deixa como herança os estudos que, esconjurando os fantasmas da obscuridade, da não-civilização e do despotismo, podem servir de bússola e leme para a consecução da república e da democracia no país.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Pós-Doutor pela Universidade de Valência (Espanha).