Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

No último domingo, o jornal O Globo publicou dados da última pesquisa A cara da democracia no Brasil, um survey que o Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação vem fazendo anualmente desde 2018. A investigação tenta produzir uma  fotografia atualizada de como o brasileiro enxerga a democracia no país e de como se apropria da informação política, focalizando três áreas temáticas, a saber, democracia, representação e deliberação no âmbito do Legislativo; participação e hábitos políticos da cidadania; e justiça e democracia no âmbito do Judiciário.

O Instituto faz parte do Programa de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) e é formado por grupos de pesquisas da UFMG, IESP/UERJ, Unicamp e UnB, além de pesquisadores de  outras universidades brasileiras e estrangeiras. Neste ano, foram entrevistados presencialmente 2.538 eleitores em 201 cidades em todas as regiões do país,  entre os dias 4 e 16 de junho. A margem de erro da pesquisa  é de 1,9 ponto percentual, e o índice de confiança de 95%, tendo sido financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig).

Os dados colhidos por A cara da democracia no Brasil, desde 2018, mostram mudanças importantes no comportamento, nas atitudes e nos valores dos cidadãos brasileiros no que atine à democracia e ao seu funcionamento no país. Da agregação de dados da série histórica, algumas considerações podem ser apontadas: a relação com o sistema representativo aponta déficits muito significativos, expressados no baixo grau de confiança e de avaliação das instituições, na recusa da política, dos partidos e dos políticos, constituindo percepções negativas que afetam a legitimidade do sistema político democrático; no âmbito da participação, novas formas de ativismo passaram a compor os modos de organização e de mobilização, traduzindo as mudanças estruturais da política na era das novas tecnologias de comunicação, e conferindo à opinião pública um papel potencializado sobre as mediações que realiza entre os cidadãos e o Estado; o estudo dos posicionamentos e dos julgamentos sobre o sistema político e a avaliação do seu impacto sobre a adesão à democracia, assim como a identificação de atitudes com relação aos valores da vida democrática, tais como a tolerância e o respeito aos direitos.

No geral, de um lado, os dados da pesquisa de 2022 possibilitam o questionamento dos tempos ásperos, aborrecidos e difíceis, em que se assiste, entre outros aspectos, a um inédito ataque às instituições da democracia representativa, a partir mesmo “de dentro” da política. De outro, possibilitam também luzes para o encaminhamento dos problemas ingentes para a construção da democracia política, da efetivação da república e da afirmação do Estado de Direito. Por isso, uma parte do amplo e rico conjunto de dados trazidos à luz merece atenção especial, qual seja o da confiança/desconfiança nas instituições.

A novidade alvissareira é, apesar de ainda ser preocupante,  o recuo no descrédito nos partidos políticos e no Congresso Nacional, instituições basilares da democracia representativa. Assim é que, se, em 2018, 78% declaravam não confiar nos partidos políticos, hoje o índice está em baixa, englobando  53% dos entrevistados. Já quanto ao Congresso Nacional, os 58% que não confiavam em 2018 desceram para 46% em 2022.

Por outro lado, as Forças Armadas têm o índice de desconfiança em crescendo, passando de 21%  em 2018 para 29%   em 2022. A hipótese plausível é que o protagonismo político ruidoso adquirido durante a presidência de Bolsonaro, embora a confiança esteja ainda em patamares confortáveis,  fizeram a desconfiança sobre elas subir oito por cento em quatro anos.

Finalmente, salienta-se a confiança que os brasileiros depositam na Justiça Eleitoral, alvo de ataques sem quartel do presidente da República e dos seus apoiadores. Ao todo, 69% indicaram algum grau de confiança na instituição responsável por conduzir o processo eleitoral, contra 29% que dizem não confiar nela.

A avaliação de índices de confiança/desconfiança tende a ser relevante para os ajustes necessários ao desenvolvimento da institucionalidade democrática. Afinal,  e em paráfrase à Escritura, se o justo vive da fé, o sistema político democrático vive, em grande medida, da confiança da cidadania.

 

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).