Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

O Brasil assiste a um bate-boca perigoso, com epicentro na presidência da República,  sobre a legitimidade e segurança do  sistema eleitoral vigente, mormente no que diz respeito à tecnologia para a captação e apuração de votos. Ao longo de duas décadas,  introduziu-se gradativamente a urna eletrônica no processo eleitoral, inclusive, segundos dados do Tribunal Superior Eleitoral, neste ano, cerca de 76% dos eleitores exercerão o seu direito ao sufrágio por via de identificação biométrica. A propósito, contemplando vários momentos históricos e se valendo de pequenos excertos, este escrito transcreve manifestações de publicistas que se debruçaram sobre a questão eleitoral e termina com um relato anedótico sobre o assunto. Veja-se:

Antônio Carlos de Andrada Machado (Parecer legislativo sobre eleições de  1840): “Lançando os olhos sobre as eleições do Ceará, pareceu-me que tal voto popular não existia, tudo quanto havia não era opinião do povo, era, pelo contrário, uma opinião fictícia, forjada pelo embuste, e que a cada passo se  descobria nela o dedo flexível da fraude, ou o punho cerrado da violência”.

João Francisco Lisboa (Jornal de Timon): “[…] tivemos onze mil eleitores, se não reais e perfeitamente de carne e osso, ao menos bem e devidamente escriturados e aprovados nas atas admitidas à apuração, sem contar ainda os milhares que figuravam nas atas rejeitadas […]”. E: “[…] Se fosse lícito admitir a possibilidade de umas eleições perfeitamente livres e pacíficas, em que os votantes, descativados de quaisquer influências e sugestões estranhas, procedessem isoladamente, sem concerto, e em toda a liberdade e pureza de consciência, o resultado provável seria que apenas uma meia dúzia dos menos remissos iria à urna lançar votos verdadeiramente  abomináveis. […]”

Nabuco de Araújo (Discurso de sorites): o “sorites fatal […] que acaba com a existência do sistema representativo: o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar Ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo no nosso país!”

Zacarias de Góis e Vasconcelos (Perfis parlamentares 9): “Em um belo dia, sem motivos conhecidos do Parlamento, sem vencidos, nem vencedores, o chefe de Estado demite os ministros, chama outros, que não tenham apoio nas urnas, os quais vão consultar a mentirosa urna”.

Em nota à obra de Assis Brasil (Democracia representativa: do voto e do modo de votar), Paulo Brossard observou: “[…] as próprias atas dos corpos legislativos exibem casos de se fazer um  representante da nação por simples emenda, mandando trocar um nome por outro. […] A  única atenuante era – não se tratar verdadeiramente de averiguar quem era mais votado, por que ninguém o era; as eleições figuravam na consciência pública  como simples fantasmagoria”.

Por sua vez, ao sorites imperial de Nabuco de Araújo, Assis Brasil contrapôs (Manifesto dos Libertadores Riograndenses)  um sorites republicano (República Velha): “Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem certeza de votar, se porventura for alistado; ninguém tem certeza de que lhe contem o voto, se porventura votou; ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração, no chamado terceiro escrutínio, que é arbitrário e descaradamente exercido pelo déspota substantivo, ou pelos déspotas adjetivos, conforme o caso for da representação nacional ou das locais”.

Victor Nunes  Leal (Coronelismo, enxada e voto): “O sigilo do voto […] era então burlado por diferentes processos. O mais frequente consistia em usarem os partidos sobrecartas de tamanho, formato e cor diferentes. Assim, ao ser depositado na urna, à vista de todos, o voto era perfeitamente identificado. Como os eleitores mais ladinos começaram a meter cédulas de um partido em sobrecarta de outro, para ludibriar a vigilância  da mesa e dos espias, passou-se   a entregar ao eleitor a sobrecarta já fechada, com o voto apropriado”.

Por fim, recolhe-se de Sebastião Nery (Folclore político) uma história de Chico Heráclio, coronel de Limoeiro, Pernambuco, e “senhor da terra, do fogo e do ar”: “[…] Fazia eleição  como um pastor. Punha o rebanho em frente à casa e ia tangendo, um a um, para a urna. Na mão, o envelope cheinho de chapas, que ninguém via, ninguém abria, ninguém sabia. […] Um dia, um eleitor foi mais afoito que os outros.  – Coronel, já cumpri meu dever, já fiz o que o senhor mandou. Levei as chapas, pus tudo lá dentro, direitinho. Só queria perguntar uma coisa ao senhor: – em quem foi que eu votei? – Você está louco, meu filho? Nunca mais me pergunte uma asneira dessa. O voto é secreto”.

Eleitores não reais e verdadeiramente de carne e osso, dedo flexível da fraude, punho cerrado da violência, mentirosa urna, eleições como simples fantasmagoria, envelopes fechados… constituem o passado eleitoral brasileiro. Com certeza, e a despeito da lambança bolsonarista sobre a Justiça Eleitoral e a urna eletrônica, em matéria de voto e eleição – das eleições a bico de pena à urna eletrônica – o Brasil deu um salto qualitativo. Vamos votar!

 

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022)” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).