Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política.

Por este semestre, dois documentos fazem ressurgir o constitucionalismo. São dois momentos: um contempla o presente, o outro, o futuro. Enfim, dois textos constitucionais: um, a Constituição apostólica “Praedicate Evangelium” sobre a Cúria Romana e o seu serviço para a Igreja e para o Mundo, promulgada pelo papa Francisco I em 19 de março do ano corrente e  vigente desde o último dia 5; o outro, a Constituição da Terra,  elaborado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli.[i]

A Praedicate Evangelium   contém um plano de reforma orgânica da Cúria Romana, com modificações em toda a estrutura administrativa da Igreja Católica. Pretende, assim, que a Igreja seja capaz de caminhar em estilo sinodal e de voltar a atenção para o contexto socioeconômico e ambiental, para os processos de inculturação e para o discernimento dos sinais dos tempos. A seu tempo, as ideias de subsidiariedade, descentralização e corresponsabilidade devem  nortear o processo de contenção das doenças da Cúria.

Talvez uma das invocações mais importantes que emerge do novo texto constitucional é o da plena participação de leigos e – formidavelmente – de leigas  nas tarefas de governança e responsabilidade da Secretaria de Estado, dos dicastérios (os 51 departamentos governamentais), os tribunais eclesiásticos, os conselhos, os ofícios, as comissões e os comitês, todos ali normativamente previstos e com competências estabelecidas. Com 250 artigos, a Constituição substitui a Pastor Bonus, promulgada por João Paulo II em 1988, e é decorrente do processo de audição que, iniciado com as Congregações Gerais e  antecedente ao Conclave de 2013, prosseguiu com a participação  do Conselho dos Cardeais e, principalmente, acolheu a orientação do papa atual.

Por sua vez, a Constituição da Terra parte da constatação feita por Ferrajoli, de que existem problemas globais  que não fazem parte da agenda política dos governos nacionais, ainda que da sua solução dependa a sobrevivência da humanidade, a saber,  o aquecimento global, as ameaças à paz mundial, o crescimento das desigualdades, a morte de milhões de pessoas todos os anos por falta de água potável, de alimentação básica e de fármacos essenciais, ou as massas de migrantes que fogem das condições de miséria e  degradação dos seus países. Ainda para Ferrajoli, tais tragédias  não  são fenômenos naturais nem simples injustiças. Pelo contrário, são violações massivas dos direitos fundamentais estipulados nas diversas declarações constitucionais de direitos, tanto  nacionais como supranacionais.

Para o antigo professor das Universidades de Camerino e de Roma, a humanidade  se encontra hoje diante de uma encruzilhada da história, seguramente a mais dramática e decisiva: sofrer  e sucumbir às múltiplas catástrofes e emergências  globais, ou   fazer frente a elas, opondo-lhes a construção  de garantias constitucionais idôneas, em escala planetária, projetadas pela razão  jurídica e  política. Logo, somente uma Constituição da Terra, que introduza uma autoridade planetária para a tutela dos bens vitais da natureza, proíba todas as armas como bens ilícitos, começando pelas nucleares, e introduza uma fazenda pública e instituições legítimas de garantia em defesa dos direitos de liberdade e da atuação de sociais,  poderá realizar o  universalismo de los direitos  humanos.

Outro  varão  prudentíssimo, Nicolau Maquiavel, florentino tal qual Ferrajoli, já admoestava há quinhentos anos que há tamanha distância como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a sua ruina do que a sua preservação. Não há dúvida de que o projeto de uma Constituição da Terra é  uma hipótese utópica, mas, como quer o seu autor, a única resposta racional e realista capaz de limitar os poderes selvagens dos Estados nacionais  e dos mercados em favor da habitabilidade do planeta e da sobrevivência da humanidade. Uma utopia calcada no mais feroz realismo!

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).

[i] Ver, respectivamente, SANTA SÉ. Constituzione Apostolica “Praedicate Evangellium” sulla Curia Romana e il suo servizio alla Chiesa e al Mondo. Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2022/03/19/0189/00404.html. Acesso em: 5 jun. 2022; e FERRAJOLI, Luigi. Por una Constitución de la Tierra: la humanidad en la encrucijada. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Editorial Trotta, 2022.