[Sem o Estado] a vida humana é solitária, miserável, sórdida, embrutecida e curta.

Thomas Hobbes, Leviatã

 

Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

O país assiste com um misto de estarrecimento e hipocrisia os desdobramentos das mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Estarrecimento pela brutalidade e ousadia dos criminosos,  a provocar, inclusive, a comoção da opinião pública internacional. Hipocrisia também, visto que não se constitui num caso isolado, porém, mais um fato corriqueiro no itinerário nacional de violência das facções, milícias e agências policiais, em que a diferença é um cidadão britânico e jornalista respeitado no duplo homicídio. Por tudo, transcendendo  a casuística cruel, não se pode deixar de especular sobre uma realidade mais profunda, qual seja a da perda da soberania interna do Estado brasileiro, transformando-o num “não-Estado”.

No desenrolar do processo de formação do Estado nacional – e constitucional,  a partir de certa quadra -, tem-se o Estado como uma instituição que, nos limites de um território e baseado num ordenamento jurídico, exerce o poder político sobre um conjunto de pessoas. Os tempos qualificaram tais pessoas, na transição de súditos para cidadãos, isto é,  com direito a ter direitos civis, políticos e sociais, econômicos e culturais, enfim, liberdade, democracia e direitos humanos.  Parece que, na conjuntura brasileira, está muito evidente a deterioração do poder político. Não se vivia no melhor dos mundos, no entanto, a partir do resultado das eleições presidenciais de 2018, a erosão do poder do Estado brasileiro  parece advir também da própria presidência da República. A propósito,  num paralelismo com as mortes em comento, traga-se à colação o desmantelamento de agências estatais   de proteção aos povos indígenas e de fiscalização e controle do meio-ambiente,  assim como a distribuição defeituosa de recursos materiais e humanos policiais e  militares.

Há quase de 34 anos, se promulgou no país uma constituição com o espírito carregado de programaticidade e diretividade,  estabelecendo-se  como “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por seu turno, o texto constitucional de 1988 estabelece a soberania – externa e interna – como um dos fundamentos do Estado brasileiro.

Os crimes ocorridos no Vale do Javari, no oeste amazônico, demonstram, como amostragem significativamente atormentadora,   que o país já não exerce sobre extensas faixas do território nacional o poder político, presas que estão do crime organizado nacional e internacional, que associa a traficância de drogas ilícitas e o contrabando de armas à atividade criminosa da garimpagem, do desmatamento, da caça, da pesca e da grilagem de terras da União. A perda de soberania interna dessa fração do território nacional vem somar-se aos territórios das cidades grandes e pequenas, apropriado pelas facções de traficantes e de milicianos.

Fala-se na existência de um “Estado paralelo” ao Estado encimado pelo texto constitucional de 1988. No entanto, não é absurda a hipótese de que, em boa medida, se trata de um “Estado entremeado”, em que  a  congérie de ações e omissões do Estado formalmente constitucional possibilita  uma verdadeira associação entre o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, o civilizado e o bárbaro, enfim, um “não-Estado”.

Para usar de certa liberdade conceitual, forja-se um verdadeiro Estado de inconstitucionalidade permanente, a preceder a guerra de todos contra todos, e o medo da morte violenta a orientar as ações e reações dos cidadãos. Em suma, a volta ao estado de natureza hobbesiano, em grande parte proporcionada pelas ações e omissões do poder político, meridianamente vislumbradas.

 


Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).