Arte: Secom/MPF.

“Não há como negar que temos no Brasil um racismo estrutural e institucional em todas as instituições. Temos que aceitar essa realidade e trabalhar para mudar”. A avaliação foi feita pela subprocuradora-geral da República Ela Wiecko, nessa quinta-feira (2), ao encerrar audiência pública que discutiu a interface entre militarização e racismo. No evento, organizado pela Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal (7CCR/MPF), procuradores da República, defensores públicos, policiais, representantes da sociedade civil e pesquisadores debateram sobre o que significa a militarização das forças policiais e como a reprodução dessa cultura de violência e enfrentamento está direcionada à população negra.

Coordenadora do Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI) contra o Racismo na Atividade Policial, Ela Wiecko ressaltou que o objetivo do encontro on-line foi promover o diálogo entre os diversos atores que atuam com segurança pública, a fim de alinhar conceitos e buscar perspectivas comuns de enfrentamento do racismo. Para isso, é preciso reconhecer a perpetuação da cultura escravista nas instituições. “A gente não pode voltar atrás na história, mas temos que olhar para o passado e fazer uma revisão. Temos que desestruturar esse racismo, essa estrutura oligárquica que vem do tempo da colonização”, afirmou.

Ao fazer a palestra de abertura dos debates, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, apontou que a militarização das polícias é resultado de uma opção político-institucional que compreende segurança pública como enfrentamento do crime e combate ao inimigo interno, e não como um direito fundamental. Ele explicou que essas duas perspectivas estão presentes na Constituição Federal de 1988, o que gera uma tensão e uma disputa político-ideológica permanentes.

Segundo o especialista, é preciso superar a ideia de ineficiência das polícias e refletir sobre o sistema de ideias e valores que tem movido essas instituições nos últimos trinta anos. Ele esclareceu que a militarização não está associada a noções de hierarquia ou subordinação, mas a padrões de trabalho, condutas e procedimentos adotados pelas instituições policiais. “Existe uma construção social no Brasil de que o inimigo interno é pobre, negro e morador de periferias. Então não podemos dizer que as polícias são ineficientes. Elas são muito eficientes em fazer um tipo de controle social, que tem como subproduto o racismo estrutural e institucional”, pontuou

Lima alertou, ainda, que a cultura da militarização não impacta apenas a atuação das polícias, mas alcança também instituições como o Ministério Público e o Poder Judiciário. Isso acontece, por exemplo, quando se reduz a pauta do controle externo da atividade policial à apuração de desvios individuais de conduta. “Se a gente quer enfrentar o racismo, temos que olhar para as instituições. Se queremos pensar segurança pública como um direito fundamental, temos que fazer uma reforma das instituições policiais”, concluiu.

Debates – Mais de 50 pessoas se inscreveram para falar durante a audiência pública. Os depoimentos reforçaram a existência de um padrão racista de atuação das instituições de segurança pública. “O Brasil produz chacinas, matanças e são sempre de pessoas negras, jovens negros de favela e periferia”, declarou Jurema Werneck, da Anistia Internacional Brasil, acrescentando que nenhuma instituição, civil ou militar, está dispensada de cumprir as determinações de direitos humanos. Para Vanda Pinedo, do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina, trata-se de um “genocídio institucionalizado”. “Essa ação é sempre nos territórios mais pobres e onde habita a população negra, completou Deise Benedito, integrante da Nova Frente Negra Brasileira.

O ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Guilherme Pimentel Braga, ponderou que a brutalidade policial no nosso país é a continuidade histórica do passado de tradição escravocrata. A visão foi endossada por Gabriel Sampaio, da organização não-governamental Conectas Direitos Humanos. Segundo ele, “é necessário um debate estratégico sobre políticas públicas que protejam a população negra do racismo estrutural e, sobretudo, da violência institucional”.

A pesquisadora Jacqueline Sinhoreto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), frisou que os estudos comprovam a maior incidência das ações policiais sobre pessoas negras e jovens. “É um dado que está sendo medido há mais de 15 anos, comprovadamente existente”, registrou. Ela também chamou atenção para o comprometimento das demais instituições do sistema de justiça com a cultura da militarização.

Na avaliação do procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, essa predominância da visão militarizante da atividade de segurança pública vai na contramão de todos os tratados internacionais de direitos humanos. Ele ressaltou ainda que, para atender à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de que a investigação de supostas mortes ou tortura decorrentes de intervenção policial devem ser investigadas por um órgão independente, os Ministérios Públicos precisam passar por uma reestruturação interna urgente.

Para o procurador regional Paulo Leivas, membro suplente da 7CCR, esse debate é imprescindível e inadiável, sobretudo nos cursos de formação das carreiras dos Ministérios Públicos. “É fundamental que nós tenhamos uma interpretação unificada de que a Constituição Federal estabelece uma compreensão de segurança pública como direito humano”, asseverou.

Outro lado – Representantes de corporações policiais federais também participaram das discussões.O policial federal Guilherme Werner reforçou que é preciso diferenciar a polícia de ordem, que tem uma atuação preventiva, e a polícia judiciária, voltada ao sistema de segurança. “A gente não pode botar uma polícia que foi treinada para ser preventiva para fazer trabalho de operação policial e vice-versa. Se isso acontecer, vai ter erro, vai ter desvio”, alertou.

O diretor executivo da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Daniel Felipe de Souto, afirmou que a corporação não é uma polícia militarizada e nem caminha nesse sentido. Como exemplo, citou a carreira única e um sistema de hierarquia que não é perene. Para ele, o ponto principal não é a interface entre militarização e racismo, e sim a reafirmação dos direitos humanos e o combate à violência de toda ordem, em especial contra grupos mais vulneráveis, como indígenas, comunidade LGBTQ+ e a própria comunidade negra. Souto ressaltou ainda que eventuais desvios ocorridos no âmbito da PRF são atos isolados, que não representam a instituição.

O PRF Julio César Matos de Oliveira apontou a necessidade de aprimorar o controle interno realizado pelas corregedorias. Segundo ele, além de dotar os órgãos com estrutura física e logística, é preciso assegurar autonomia e estabilidade para que essas instâncias funcionem adequadamente. Paulo José Marques dos Santos, também da corporação, defendeu o reforço de conteúdos relacionados aos direitos humanos nos cursos de formação e nas academias de polícia.

Do site do MPF