Filomeno Moraes – Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Foto: Ares Soares.

Há exatos cem anos foi publicado na Alemanha o opúsculo Teologia política. O seu autor, Carl Schmitt (1888-1985), professor de Teoria do Estado da Universidade de Bonn e de Direito Político da Universidade de Berlim, por este e por outros livros, como O conceito do político, O guardião da constituição, Teoria da constituição, O nomos da terra, tornou-se um dos maiores pensadores da Política e do Direito do século XX.

Na esteira da sua trajetória de pensador realista genial, mas de malignas opções políticas, acabou por se tornar amado e odiado, visto ora como alguém que proporcionou uma contribuição formidável para a teoria política e constitucional, ora como um jurista indelevelmente ligado ao estabelecimento totalitário nazista. Por conta da participação na política hitlerista, depois da Segunda Guerra, Schmitt foi recolhido num campo de prisioneiros, como bem descreve no Ex captivitate salus, as suas memórias desse tempo. No que já se chamou “autodesnazificação mascarada”, na defesa perante o Tribunal de Nuremberg, afirmou que foi um Benito Cereno, em alusão ao personagem do romance homônimo de Herman Melville, o qual, comandante de um navio de escravizados, foi aprisionado pelos seus desventurados passageiros, teve a sua tripulação massacrada e passou, sob ameaça de morte, de comandante a comandado.

Schmitt não foi um Benito Cereno. Pelo contrário, há elementos bastantes para afirmar a convicção de que, por oportunismo, ambição ou coisa que assim valha, quis tornar-se o jurista número do experimento totalitário nazista. Foram os próprios nazistas é que o impediram, por não lhes inspirar confiança. Inscrito no partido nazista em maio de 1933, nos anos seguintes, publicou obras que constituíram a base ideológica jurídico-política e justificadora do regime.

Nomeadamente, a partir dos anos 1980, parte do contributo de Schmitt, sobretudo o dos anos 1920, passou a despertar vivo interesse. Sobre ela se debruçaram filósofos e cientistas políticos como Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Chantal Mouffe, Jürgen Habermas, Antonio Negri. Antes, entre outros, Walter Benjamin e Hanna Arendt, Leo Strauss e Friedrich Hayek, Raymond Aron e Hans Morgenthau, há haviam demonstrado a riqueza do contraditório pensamento de Schmitt.

Norberto Bobbio manteve com ele intensa correspondência postal, nos anos 1948 a 1953 e 1980. Numa das cartas, sem descurar do apreço intelectual que possuía pelo teórico político-constitucional, cuidou de demarcar, todavia, o terreno, afirmando: “Não sou marxista muito menos comunista. A admiração pelos  escritores iluministas ensinou-me a me defender da tentação do fanatismo. Mas enquanto por trás de Marx vejo povos com sede de justiça, por trás dos teólogos  como Donoso (uma das influências de Schmitt) vejo apenas os poderosos que têm sede de um poder cada vez maior”.

No Brasil, Gilberto Bercovici, Eros Roberto Grau, Gilmar Mendes, entre outros, também já escreveram sobre o pensador alemão. Do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), além do estudo de Renato Lessa, duas teses de doutorado premiadas e publicadas em livro – O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt (Bernardo Pereira) e Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt (Pedro Hermílio V. B. Castelo Branco) – se debruçaram sobre o pensamento schmittiano.

Mas em que consiste a Teologia política? É um tratado sobre a soberania do Estado, tendo como subtítulo “quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, a saber, definição de soberania; o problema da soberania como problema da norma jurídica e da decisão; teologia política; sobre a filosofia estatal da contrarrevolução (de Maistre, Bonald, Donoso Cortés).  Schmitt o inicia afirmando peremptoriamente que “soberano é que o decide sobre  o estado de exceção”. Depois, no capítulo 3, salienta que “todos os conceitos significantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados”. Soberania, decisão, estado de exceção, Estado, teologia, secularização… Acrescidos do juízo sobre a política como a relação  “amigo-inimigo”, tem-se o caldeirão conceitual em que se desenvolve fundamentalmente o pensamento político-constitucional  de Schmitt. Destarte, Teologia política chega aos cem anos cheio de vigor teórico.

A propósito, Max Weber liderou um grupo de estudos por que passaram,  nas duas primeiras décadas do século passado, as mais luminosas mentes da Alemanha. O então jovem Schmitt esteve por lá algumas vezes, o que não  confunde o “coveiro do liberalismo” e a “Cassandra do direito público”, como alguns dos seus detratores o qualificaram, com as ideias e a prática weberianas. Apenas, para dizer, com Weber, que o caminho da política não leva ninguém para o céu (mas pode evitar que esta vida se transforme num inferno, digo eu). A trajetória de Schmitt, sobretudo a dos 1930, demonstra também como a política pode transformar a vida coletiva num inferno, principalmente quando conta com a colaboração de juristas como autor de Teologia política.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).