Filomeno Moraes é Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Foto: Ares Soares.

O desaparecimento recente de Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (Universidade de São Paulo), sensibiliza fortemente, nestes tempos duros e incertos por que passa o Brasil sob o bolsonarismo, os que, mais próximos ou mais distantes, acompanharam a sua trajetória de teórico do Estado e cavaleiro andante dos direitos humanos.

De fato, Dallari percorreu uma invejável trajetória acadêmica, como docente de graduação e pós-graduação, orientador de pós-graduação e publicista. Professor titular de Teoria Geral do Estado da FDUSP, também foi seu diretor, sucedendo a uma esticada hegemonia de diretores conservadores ou reacionários, em que não faltaram Gama e Silva e Alfredo Buzaid, personagens-chave da ditadura inaugurada em 1964. Aposentado desde 2001, a sua luz continuava a orientar caminhos pelas arcadas da velha Faculdade de Direito, uma das duas pioneiras, criadas em 1827.

Como orientador de teses de doutorado, lembre-se por todos o autor de um dos mais densos trabalhos sobre o Estado produzidos no Brasil (“Estado e ideologia: aparência e realidade”), Alaor Caffé Alves. E, para os que, na atualidade, apreciam ou depreciam o Supremo Tribunal Federal, cite-se que os ministros Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes também foram seus orientandos de doutorado. Por sua vez, Dallari é autor de “Elementos de Teoria Geral do Estado”, obra didática – desafortunadamente não atualizada – que já ultrapassou a trigésima edição. Além do mais, e contra a célebre advertência de Max Weber, segundo a qual a cátedra não existe para os profetas (nem para os demagogos), Dallari deu à luz um provocativo livro denominado “O futuro do Estado”, que constitui ainda agora uma importante reflexão sobre o tema.

A outra vertente da vida pública de Dallari é o da luta incessante pela normatização e concretização dos direitos humanos, o que o tornou um cidadão universal, reconhecido pela intelligentsia, pelas organizações humanitárias e pelos governos progressistas. No Brasil, enfrentando a ditadura militar, atuou na Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, criada no começo dos anos 1970 pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, para a defesa dos direitos humanos, nomeadamente dos presos políticos e dos seus familiares. Na qualidade de membro proeminente da Comissão, quando da vinda de João Paulo II ao Brasil, em 1980, foi designado para falar durante missa papal. No dia anterior, em frente ao portão da sua casa, em seguida a uma coronhada, foi enfiado num carro, levado para um terreno baldio e severamente espancado. A surpresa aconteceu quando, em cadeira de rodas e cheio de curativos, apareceu na hora da missa e pronunciou a sua oração, diante de um papa que, perplexo, tomava conhecimento concreto da brutalidade de grupos que agiam nas sombras e porões da ditadura brasileira.

Obedecendo o ciclo da vida, Dallari acabou a carreira, depois de combater o bom combate, e guardar a fé nos valores constitucionais da democracia, do Estado de Direito e dos direitos fundamentais. Mas deixa a inspiração para que se enfrentem estes tempos duros e incertos em que milícias de diversos jaezes, sob a inspiração de um presidente da República que, na contramão de tudo por que Dallari lutou, deposita os seus sacrifícios nos altares dos demônios da tortura, da ditadura, da instabilidade institucional, enfim, da anticivilização.

Pós-escrito. Memória pessoal: o articulista era um jovem professor de Teoria Geral do Estado, quando num congresso em São Paulo, assistiu a uma mesa-redonda formada, entre outros, por Dallari e o então ministro do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves, muito festejado pelo seu notório saber jurídico profundamente conservador. Naquele momento, destoando dos rapapés dirigidos ao ministro pelos outros componentes, Dallari verberou com energia a complacência do STF com a legislação ditatorial, mormente o AI-5. Depois, a mesa postou-se em profundo silêncio obsequioso sobre o assunto.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).