Filomeno Moraes. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação.

A reflexão sobre a estrutura, a conjuntura e o funcionamento político-constitucionais brasileiros, algumas vezes, só pode ser tratada pelo “método confuso” ou pelo “realismo fantástico”. Todavia, quando é possível a análise político-constitucional sistemática, é pertinente a observação do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, para quem, “os juristas, quando discutem uma questão, ou são amigos do legislador, ou são amigos dos juízes, ou são amigos do Executivo”.

De fato, a consagração do Executivo, Legislativo e Judiciário, com as suas funções típicas e as decorrentes dos necessários freios e contrapesos, sem o esquecimento, como destacado por Bruce Ackerman, das novas formas institucionais que não podem ser categorizadas como legislativas, judiciais ou executivas, compõem a pedra angular do edifício político-constitucional erigido em 1988. Ocorre agora que, temerariamente, um adendo na categorização da “amizade” a legisladores, juízes ou executores, qual seja a do amigo das Forças Armadas, no sentido de que, deixando de lado as suas atribuições profissionais necessárias e relevantes, atuem como um poder extraordinário a pairar sobre os poderes político-constitucionais do art. 2º da Constituição Federal (“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”).

Em outras palavras, o que se tem é a volta das vivandeiras, algo extremamente indesejável no grau de institucionalização democrática a que se chegou, sob a vigência do texto constitucional de 1988. Tal fenômeno, que acompanhou a República no século passado, foi invectivado pelo marechal Castello Branco, em discurso pronunciado no Estado Maior do Exército, quando anotou que “vivandeiras alvoroçadas”, desde 1930, vinham aos bivaques “bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”. Por sinal, muitíssimas extravagâncias, sendo a mais penosa a ditadura civil-militar que se inaugurou em 1964 e perdurou por 21 anos.

Os tempos mudaram, obviamente. Na atualidade, as vivandeiras não necessitam mais ir fisicamente aos quartéis, fazem-se presentes nas mídias tradicionais e nas redes sociais, ora com argumentos cavilosos, em que se destaca o temor – que soa como um chamamento – da intervenção castrense; ora com proclamações lastreadas em “fake”- teorias constitucionais sofisticadas, que creditam às Forças Armadas a detenção de um famigerado poder moderador para se exercer, inclusive, no varejo político. O nome disto tudo é golpismo.

A seu tempo, coincidência ou não, as vivandeiras atuais desposam um retórico e seletivo apreço pela liberdade de expressão. Aqui, e faz-se inevitável a lembrança de novela de Gabriel García Márquez, na esteira da triste e incrível história do desalmado deputado Daniel Silveira, de controversa atuação e marcante intolerância políticas e transformado num mártir cívico, nunca se viu tanta defesa da liberdade de expressão, superando mesmo os mais radicais corifeus do liberalismo ilustrado. Por todos, veja-se a manifestação recente do general da reserva que preside atualmente o Clube Militar, afirmando lamentar a existência de “ministros cujas togas não serviriam nem para ser usadas como pano de chão, pelo cheiro de podre que exalam” e vendo na condenação do deputado Silveira um “julgamento político, inconstitucional e imoral, com o intuito de cercear o sagrado direito universal da Liberdade de Expressão”. “Sagrado direito universal da Liberdade de Expressão”: não é despropositado pensar que, com esse Voltaire fardado nos anos de chumbo, nem Carlos Heitor Cony teria sido tão perseguido por perguntar o que o general Costa e Silva tinha, além da farda que as traças roíam. Inclusive, se poderia ter evitado o AI-5, cuja causa imediata fora a negativa da Câmara dos Deputados para processar o deputado Márcio Moreira Alves por, em discurso na tribuna parlamentar, ter sugerido que as moças que dançavam com cadetes e namoravam jovens oficiais os boicotassem.

Na dialética da vivandagem política, há as vivandeiras e os vivandanos. No Brasil da Nova República, de José Sarney até Michel Temer, conseguiu-se com êxito esconjurar tal desgraça. No seu discurso, Castello Branco sobre as vivandeiras que o atanazavam à época dizia “eu identifico a todos”. No momento, também pode-se identificar o vivandano principal, a desenvolver um exercício escrachado de deslegitimação do processo eleitoral e das instituições republicanas. O que resta é agir politicamente para que vivandeiras e vivandano não arruínem o experimento democrático tal custosamente construído.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).