Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Foto: Ares Soares.

O presidencialismo é uma das colunas-mestras da construção institucional brasileira, juntamente com o federalismo, a separação tripartida de poderes, o bicameralismo, o proporcionalismo e o multipartidarismo. Sob o regime constitucional vigente, recebeu no terreno acadêmico algumas qualificações, como presidencialismo de coalizão (Sérgio Abranches) e, mais recentemente, presidencialismo de orçamento (José Augusto Guilhon de Albuquerque).

Na  última Constituinte, contra o presidencialismo houve investida muito  severa, todavia, diversas condicionantes acabaram por evitar a solução parlamentarista. No entanto, dispôs a CF/1988 sobre a necessidade do sistema de governo ser submetido à decisão popular, com a previsão de plebiscito para o dia 7 de setembro de 1993, antecipado pela  segunda emenda constitucional para o dia 21 de abril do mesmo ano. O resultado da consulta foi a preferência, por 69,2% dos eleitores, pelo sistema de governo presidencial. Aliás, repetiu-se a consagração que já acontecera por ocasião do referendo de 1963, quando o eleitorado, por 76,98%, recusou a solução parlamentarista levada a efeito durante a crise política ocasionada, em 1961, pela renúncia do presidente Jânio Quadros.

Na verdade, sob o texto constitucional de 1988, desenvolveu-se o padrão de governança denominado “presidencialismo de coalizão”, que impactou de modo diverso o relacionamento entre Executivo e Legislativo. Obviamente, houve aspectos problemáticos envolvidos na dinâmica de tal modelo, entre os quais, aquele concernente à relativização do princípio republicano, o do poder invisível a envolver o financiamento partidário e eleitoral. Mas, ao fim e ao cabo, o presidencialismo de coalizão afastou o espectro da ingovernabilidade e da paralisia decisória.

De modo evidente, não pode ser olvidada uma fragilidade eloquente no desenrolar da práxis presidencialista, qual seja a de que a ausência de maioria parlamentar é geradora de crises, tendo estado presente no desenlace das crises políticas que ocasionaram o suicídio de Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadro, a deposição de João Goulart, sob o regime constitucional de 1946. Já sob a CF/1988, os presidentes da República sem maioria congressual – Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff – tiveram o “impeachment” decretado. Por sua vez e pelo contrário,  Michel Temer, sobre quem pesou severas acusações de malbaratamento da coisa pública, teve por duas vezes evitada a abertura do processo de impedimento pela Câmara dos Deputados.

Agora, sob Jair Bolsonaro, mais uma vez acontece o que alguém já falou, que, no Brasil, quando se espera o inevitável, ocorre o imprevisível. Inicialmente infenso a construir uma maioria legislativa, acabou por lançar-se nos braços do que denominava a “velha política” e atingir incólume o quarto ano do mandato presidencial. Tudo, apesar de, sem maiores dificuldades,  poder-se vislumbrar em seus comportamentos crimes de responsabilidade tipificados no art. 85 da CF/1988.

Talvez tenha razão o cientista político José Augusto Guilhon de Albuquerque, o presidencialismo brasileiro adquiriu a feição de “presidencialismo de orçamento”. Na verdade, um vício novo veio a conjugar-se com os vícios antigos do Congresso Nacional, com a criação, em 2019, da “emenda de relator”, que, devendo ser utilizada com a finalidade de corrigir erros ou omissões de ordem técnica do projeto de lei orçamentária, degenerou-se em uso de verba pública para ação em que o parlamentar que a indicou fica oculto, figurando o relator do orçamento (deputado ou senador) como o repassador. Ao fim e ao cabo, o mecanismo acabou se constituindo em poderoso instrumento de barganha política entre os Poderes Executivo e Legislativo, uma manifestação evidente de poder invisível no distribuir 16,8 bilhões de reais, somente ano passado, ao arrepio dos comandos do art. 37 da CF/’988, nomeadamente, o da publicidade e o da impessoalidade. Chegou-se, assim, ao império do “orçamento secreto”, com base no qual se explica, em boa medida, a sobrevivência política bolsonarista.

Algo que movimentará o Brasil, neste ano de 2022, será a reedição de mais uma eleição presidencial, um aspecto central da vida política nacional. Ano passado, intentou-se mais uma edição da “reforma política do Centrão”, com acosso ao sistema de governo presidencial e a tentativa de implantação do ornitorrinco institucional chamado semiparlamentarismo. Não logrou êxito, mas o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, sinaliza com a continuidade da discussão da matéria, com vista à  implantação de novo sistema de governo a vigorar a partir de 2030. Não deixa de ser um horizonte muito afastado, de modo que, no momento, se pode empreender uma discussão aprofundada sobre o presidencialismo brasileiro, principalmente na sua versão emergente de “presidencialismo de orçamento”.

Não se sabe se é possível se esperar tanto de candidatos em exasperação própria da competição eleitoral. Todavia, com certeza, um debate abalizado e responsável – de que certamente se ausentará o incumbente – sobre o presidencialismo brasileiro seria muito benéfico para a saúde republicana nacional. Em suma, se evitaria que o Brasil continue naquele ritmo do “rondó dos cavalinhos” do poeta Manuel Bandeira: “Os cavalinhos correndo,/E nós, cavalões, comendo…/O Brasil politicando [..]”.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).