Rio de Janeiro – Operação policial nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

A epidemia de assassinatos no Brasil vem perdendo força. No ano passado, o país registrou 41 mil mortes violentas, cifra 7% mais baixa que a de 2020 (quando houve 44 mil homicídios) e 30% inferior à de 2017 (quando se contabilizou o recorde de 59 mil homicídios).

Recém-divulgados, os números são do Monitor da Violência, um levantamento feito pelo site de notícias G1, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) a partir de dados oficiais de todos os estados.

Logo após a divulgação do Monitor da Violência, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu a diminuição dos assassinatos aos seus decretos que facilitaram o acesso da população civil às armas de fogo. Apenas no grupo dos caçadores, atiradores e colecionadores, o total de armas registradas saltou de 255 mil em 2018 (antes do governo Bolsonaro) para 1,1 milhão em 2021.

— Vocês viram que o número de homicídios por arma de fogo caiu ao menor número histórico, né? — comemorou o presidente em conversa com apoiadores na porta do Palácio da Alvorada, em Brasília. — A imprensa não fala que, [após] a liberação das armas para o pessoal de bem, o cara [criminoso] pensa duas vezes antes de fazer uma besteira. Se [o número de homicídios] tivesse aumentado, quem era o culpado? Não precisa dizer.

Especialistas em segurança pública, porém, dizem que a interpretação do presidente da República é falaciosa. De acordo com eles, o fato de os dois fenômenos (a disseminação das armas de fogo e a diminuição dos assassinatos) ocorrerem ao mesmo tempo não significa que um é necessariamente a causa do outro.

Afirma Tiago Ivo Odon, consultor legislativo do Senado na área de direito penal:

— Ao contrário, os estudos científicos mostram que a maior disponibilidade de armas de fogo no mercado leva ao aumento das mortes violentas. Os suicídios crescem, a violência doméstica dispara, há acidentes em casa envolvendo crianças, a briga de bar ou de trânsito termina em fatalidade, a arma do cidadão muitas vezes vai parar na mão do crime organizado.

O jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo dos Estudos de Violência da USP, acrescenta:

— A queda dos homicídios não se deve a nenhuma ação do governo federal. E mais: se o governo não estivesse incentivando a disseminação das armas de fogo na sociedade, a redução da violência no país poderia ter sido ainda mais acentuada.

De acordo com Odon e Manso, a diminuição dos assassinatos se deve principalmente à crescente profissionalização do tráfico de drogas. As grandes quadrilhas entenderam que, para auferirem maiores lucros, é mais racional abandonarem a velha estratégia de invadir e dominar o território alheio, em ações bárbaras que costumam deixar um rastro de mortes, e passarem a dividir o mercado com os concorrentes, convivendo de forma pacífica.

A profissionalização do crime começou a ocorrer quando traficantes de São Paulo criaram na década de 1990, de dentro de prisões paulistas, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Ao longo do tempo, o modelo de negócios do PCC foi copiado por outras facções.

Esse processo se difundiu depois que as quadrilhas cresceram e passaram a exportar a droga para a Europa, a África e a Ásia (e não apenas importá-la dos países vizinhos para o mercado nacional), ao mesmo tempo em que passaram a atuar também no atacado (não apenas no varejo).

Apesar de terem criado regras para garantir um ambiente pacífico e previsível para os seus negócios, as facções nunca deixaram de se armar.

— O pico dos homicídios no Brasil ocorreu em 2017, justamente após haver um racha entre o PCC e o Comando Vermelho — explica Manso. — Nesse momento, explodiram rebeliões e conflitos entre traficantes, com mortes, dentro de presídios no Rio Grande do Norte, em Roraima, no Amazonas. Esses conflitos se reproduziram fora das penitenciárias, nos territórios das facções, e provocaram ainda mais mortes. Depois do banho de sangue, o PCC e o Comando Vermelho fizeram uma repactuação, acabaram com o mata-mata e a paz voltou, levando à queda que se vê agora nas estatísticas nacionais de homicídio.

O pesquisador da USP chama a atenção para o fato de que, apesar de os assassinatos totais do Brasil terem caído entre 2020 e 2021, alguns estados, especialmente os da Região Norte, foram na direção contrária e assistiram a um aumento dos crimes contra a vida:

— Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, a violência encontra-se relativamente baixa porque o mercado criminal, em razão da profissionalização, está equilibrado. Por outro lado, em estados do Norte e do Nordeste, as facções nacionais chegaram há pouco tempo e ainda encontram a resistência das gangues locais, que não querem perder espaço no tráfico. O resultado do desequilíbrio nesses mercados são os conflitos e os homicídios.

O Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Conforme Bruno Paes Manso, o narcotráfico é tão lucrativo que na Região Norte os criminosos já investem os lucros oriundos da droga em outras atividades ilegais, como o garimpo, a grilagem de terras públicas, a extração de madeira e o desmatamento por meio de queimadas, aproveitando-se da ausência do poder público, o que agrava a crise ambiental na Amazônia.

Manso lembra que o crime organizado não se limita às quadrilhas de traficantes de drogas, mas inclui também as milícias — grupos armados em geral compostos de policiais e outros agentes de segurança, na ativa ou fora de serviço, que expulsaram o tráfico de bairros pobres e assumiram o controle local, passando a extorquir dinheiro dos moradores.

As milícias, assim como o tráfico, também disputam territórios e produzem violência. Estudos apontam que 72% do território da cidade do Rio de Janeiro está hoje sob o jugo de milicianos (57%) ou traficantes (15%).

— O bairro carioca de Santa Cruz é dominado pela milícia e tem uma das taxas de homicídio mais baixas da cidade — exemplifica Manso. — É claro que lá os milicianos cometem diversos crimes, mas não os assassinatos. Da mesma forma que o tráfico, a milícia percebeu que é contraproducente tentar conquistar o território alheio e entrar em guerra, e que o mais conveniente para os negócios é manter a estabilidade e a previsibilidade.

As estatísticas indicam que, de fato, o crime organizado é responsável pelo grosso da violência nacional. Algo entre 70% e 80% dos assassinatos do Brasil decorre do narcotráfico ou da milícia, seja de quadrilhas brigando entre si, seja enfrentando a polícia.

Por sua vez, os homicídios cometidos por ladrões (os latrocínios) e aqueles decorrentes de conflitos interpessoais (como a briga entre vizinhos e a violência contra a mulher) respondem pela menor parcela dos crimes contra a vida, muito embora tenham mais espaço nos jornais e despertem maior comoção pública e sensação de insegurança.

— O latrocínio e o feminicídio são crimes muito graves e traumáticos, mas não provocam ciclos de vingança, ao contrário do assassinato de traficantes e milicianos — continua o pesquisador da USP. — Quando alguém de uma facção mata pessoas da comunidade vizinha, a facção da comunidade invadida revida e mata pessoas da facção invasora, dando início a um ciclo que pode não ter fim. Em São Paulo, eu já acompanhei um homicídio que produziu outros 156 homicídios no decorrer de mais de dez anos, resultado da vingança e do seu efeito multiplicador da violência.

Especialistas em segurança pública afirmam que existem outros fatores, embora em menor grau, aos quais também se pode atribuir o recente decréscimo dos homicídios no Brasil. Um deles é a transformação da pirâmide etária. Diante da diminuição da natalidade e do aumento da longevidade, o país passou a ter menos jovens e mais idosos. Isso afeta o índice de mortes violentas porque tanto os criminosos quanto as vítimas têm majoritariamente entre 15 e 29 anos de idade.

Um segundo fator pode ser a pandemia do coronavírus, iniciada em 2020. A crise sanitária levou parte da população brasileira a permanecer mais tempo dentro de casa e expor-se menos à violência dos espaços públicos.

O consultor legislativo Tiago Ivo Odon afirma que tanto estudos científicos quanto experiências do poder público no Brasil e no exterior mostram que a chamada guerra às drogas não funciona. As operações policiais prendem principalmente pequenos e microtraficantes, deixando livres os médios e os grandes. Nas vezes em que um chefe de facção é preso, ou ele continua conduzindo os negócios de dentro da prisão, ou outro criminoso o substitui. As detenções, inclusive, facilitam os encontros e as negociações entre os chefes. A demanda dos usuários de droga não baixa quando pontos de venda são fechados.

— Guerra às drogas é o mesmo que enxugar gelo — diz Odon. — Os estudos e a experiência apontam que os melhores resultados vêm quando as ações do poder público estão voltadas especificamente para reduzir os homicídios. A polícia identifica os pontos da cidade onde mais ocorrem assassinatos e concentra suas operações nesses locais por algum tempo, até as mortes caírem. Não por acaso, esses lugares são justamente aqueles dominados por traficantes ou milicianos. A polícia cria laços de confiança com os moradores e garante a segurança afastando os criminosos ou pelo menos impedindo que eles matem. O foco desse tipo de ação não é acabar com as drogas, mas reduzir os homicídios. É praticamente uma política de redução de danos.

Ações desse tipo são levadas a cabo por estados como Ceará (programa Ceará Pacífico), Espírito Santo (Estado Presente), Minas Gerais (Fica Vivo!), Pernambuco (Pacto pela Vida) e São Paulo (Operação Saturação).

Odon avalia que, apesar de a garantia da segurança pública caber principalmente aos governos estaduais, o governo federal deveria ajudá-los mais no combate à violência letal.

Um dos gargalos está nas penitenciárias, superlotadas há tempos. Com capacidade para 440 mil detentos, elas hoje abrigam 680 mil. Para o consultor legislativo do Senado, a União poderia destinar aos estados verbas para a construção de presídios que permitam, por exemplo, a incomunicabilidade dos chefes das facções e a separação entre condenados por crimes violentos e condenados por crimes não violentos.

Na segurança pública, uma das atribuições legais do governo federal é a vigilância das fronteiras, por onde os criminosos recebem armas e drogas oriundas de países vizinhos. Tiago Ivo Odon lembra que o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), do Exército, recebeu nos últimos dez anos apenas 20% do orçamento previsto.

Odon sugere ainda outras políticas:

— O governo federal também deveria ajudar os estados e os municípios a criar mais creches para as crianças e vagas de emprego para os jovens — acrescenta. — Inúmeras pesquisas já comprovaram que as taxas de criminalidade despencam no futuro quando se investe no presente na primeira infância e no primeiro emprego.

O problema da violência tem estado no centro das atenções do Senado. No ano passado, os senadores criaram a Comissão de Segurança Pública (a mais nova comissão temática da Casa) e a Frente Parlamentar pelo Desarmamento (rebatizada nesta semana de Frente Parlamentar pelo Controle de Armas e Munições, pela Paz e pela Vida).

País violento

Apesar de os homicídios terem caído no país, os números atuais não chegam a ser motivo para comemoração. O Brasil continua figurando no topo do ranking das nações mais violentas do mundo. Em números absolutos, o país é o segundo que mais mata. Em termos relativos (comparando-se as mortes com o tamanho da população), é o 15º mais mortal. Os 41 mil assassinatos registrados no Brasil em 2021 equivalem a 112 mortes por dia ou quase 5 mortes por hora.

— O Brasil precisa agir para que os homicídios comecem a cair de forma sustentada. Não é o que acontece — afirma o pesquisador Bruno Paes Manso. — Hoje os homicídios estão caindo por causa da profissionalização do crime, não em razão de medidas do poder público. É como se estivéssemos dando veneno ao paciente moribundo e ele estivesse ganhando alguma sobrevida. Mas não podemos continuar com esse tratamento, porque o veneno mais cedo ou mais tarde vai acabar matando o paciente.

Procurado pela Agência Senado para manifestar-se a respeito dos homicídios, o Ministério da Justiça e Segurança Pública não respondeu até a publicação desta reportagem.

Fonte: Agência Senado.