Filomeno Moraes é Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Foto: Ares Soares.

Ao longo dos quatro anos da presidência de Jair Bolsonaro, manifestações da anti-modernidade que está no cerne do bolsonorarismo se sucedem. A título de amostragem, relembre-se que, anteontem, veio à luz o fenômeno das “rachadinhas”, a destacar a vinculação com o “mundo das milícias”; ontem, as revelações da CPI da Covid sobre a não-compra das vacinas, a revelar obscurantismo e antirrepublicanismo; hoje, o episódio a envolver o presidente da República e o ministro da Educação com dois pastores, o que acarretou, inclusive, a queda do último, a acentuar a existência de articulações que fogem à transparência, à publicidade e à finalidade da coisa pública.

A crer no noticiário, os pastores, supostamente recomendados pelo presidente e na condição de mandatários do ministro, eficazmente levavam a efeito a missão de trocar, com prefeitos municipais, mimos público-educacionais por doações de ouro, compras de bíblias e contributos para a construção de templos, sem falar nas taxas para a protocolização de requerimentos no Ministério da Educação. Com lances de tragicomédia, a gota d’água para a defenestração do ministro foi a publicação em escala – vaidade das vaidades, tudo é vaidade – de uma foto sua impressa nas bíblias.

De algum tempo para cá, a problemática relação entre poder político e poder religioso tem sido objeto das minhas reflexões. Neste espaço, em artigo publicado em 21 de outubro de 2020, tratei do assunto. À época, duas matérias jornalísticas deram o mote ao escrito, a saber, a reportagem “Pastores da Universal movem ações em série contra escritor por post no Twitter” (Folha de São Paulo, 10/10/2020) e o artigo de André Haguette “Pastores na política” (O Povo, 12/10/2020). A reportagem dava conta de que “dezenas de pastores da Igreja Universal do Reino de Deus apresentaram à Justiça ações de indenização contra o escritor João Paulo Cuenca em todo o país, após ele publicar em junho no Twitter que o ‘brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal’”. Já no artigo, Haguette salientava: “Li com preocupação a informação (…) que o Ceará conta com 100 pastores candidatos à eleição deste ano nos seus diversos municípios (…)”.

Mais recentemente, com prazer prefaciei o livro “Política e fé: o abuso do poder religioso eleitoral no Brasil” (Belo Horizonte: Dialética, 2022), da autoria do professor-doutor Rogério da Silva e Souza. Tal trabalho tem o sentido de responder a pergunta se é possível conhecer do abuso do poder religioso eleitoral, fenômeno extremamente subjetivo, tanto para a vida social quanto para o direito, com o reconhecimento por parte do concomitante interrogador e declarante, da dificuldade de ocupar-se do abuso do religioso no processo eleitoral, dado que tal abuso, sobre ser religioso, se faz acompanhar da circunstância de que certos atores ingressam na seara político-eleitoral com poderio econômico substantivo.

Das minhas reflexões, voltando inevitavelmente aos “clássicos”, fica a certeza de que, quem tem o poder, tende a dele abusar. E que, quando poder político e poder religioso se reúnem na mesma pessoa, ou na mesma instituição, o poder se corrompe absolutamente e da pior maneira possível: em nome de Deus. Michael Walzer, filósofo político norte-americano contemporâneo, já afirmou que “o liberalismo é um universo de ‘muralhas’, cada uma das quais cria liberdade”. É evidente que não está se referindo ao liberalismo econômico velho ou neo, mas ao liberalismo político, que proporcionou um conjunto ideias e mecanismos do qual não se pode abrir mão, se se quer viver democrática e republicanamente. De fato, as muralhas entre a Igreja e o Estado permitiram a liberdade religiosa; a muralha entre a Igreja e o Estado, separando-os da universidade, acarretou a liberdade de pensamento e de ensino e pesquisa; a muralha erguida entre a vida pública e a privada engendrou a vida pessoal, e assim por diante.

Na contramão do que quer e do que faz o bolsonarismo, parece cristalino que a construção ou o reforço das muralhas institucionais é o caminho para que o Brasil mude de direção (em diversos sentidos). É mister cuidar da efetivação dos princípios constitucionais que funcionam como muralhas a salvaguardar, entre outras, a liberdade religiosa e a liberdade de pensamento e expressão, e como efetivação do Estado laico. Intolerância, religião de Estado, confusão entre religião e política, abuso de poder religioso-eleitoral, pastores de qualquer seita dominando o Ministério da Educação: Vade retro, Satana.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).