Filomeno Moraes é cientista político, professor universitário, doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

O presidente do Senado Federal criou Comissão de Juristas para atualizar a Lei do Impeachment (Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950), que define os crimes de responsabilidade – do presidente da República, ministros de Estado, ministros do Supremo Tribunal Federal e procurador-geral da República – e regula o respectivo processo de julgamento.

Instalada no última dia 11, com o prazo de 180 dias para apresentar um anteprojeto de lei, a Comissão é composta de doze membros, tendo na presidência Ricardo Lewandowski, reconhecido professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e ministro do Supremo Tribunal Federal incontroversamente detentor de notório saber jurídico. Também a integram, entre outros, Antônio Anastasia, ex-senador e relator do impedimento de Dilma Rousseff, e Marcus Vinicius Furtado Coelho, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Lewandowski participou, inclusive, da decisão que, numa formidável licença não poética de hermenêutica constitucional e contra toda a literalidade do parágrafo único do art. 103 da CF/1988, não aplicou a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública à presidente impedida.

De fato, a septuagenária Lei do Impeachment já sobreviveu a três constituições (1946, 1967 e 1969) e, invocada nos processos de apuração de crime de responsabilidade de Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff, apresentou problemas sérios de recepção pelo texto constitucional de 1988, por conseguinte, a depender do crivo do Supremo Tribunal Federal e da integração legislativa com dispositivos dos regimentos do Senado e da Câmara, precedentes do STF e normas do tribunal do júri previstas no Código Penal.

A propósito de afastamento de presidentes da República por conta de crime de responsabilidade, merece destaque a consideração de Paulo Brossard, no seu livro monumental  “O impeachment: aspectos da responsabilidade política do presidente da República” (2. ed. ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Saraiva, 1992). Para Brossard, no direito nacional, como no direito norte-americano e argentino, “o ‘impeachment’ tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e é julgado segundo critérios políticos”. Também adverte que “o apelo ao ‘impeachment’ para solucionar crises resultantes do desajustamento do Presidente da República aos seus deveres oficiais é comparável à utilização de armaduras medievais” hodiernamente. É um instituto anacrônico, cuja utilização, se resolve crises, cria outras crises, como a que se assiste no Brasil a partir de 2016, dividindo inapelavelmente a sociedade e, no limite, provocando a emergência da tragédia bolsonarista.

De qualquer modo, já se tem uma experiência grande em matéria de impeachment, chegando a termo o de Fernando Collor, em 1992, e o de Dilma Rousseff, em 2016, e consequentemente bastante subsídio decorrente da ação política, legislativa e jurisdicional. De outra parte, o estado da arte da literatura sobre o assunto também é substantivo, tanto na área sociopolítica quanto na jurídico-política. Por todos, citem-se Brasilio Sallum Jr. (“O ‘impeachment’ de Fernando Collor: sociologia de uma crise”) e Joaquim Falcão, Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira – org. (“Impeachment de Dilma Rousseff: entre o Congresso e o Supremo”).

No que diz respeito ao aspecto procedimental, a experiência presidencialista aponta, entre outras, duas fragilidades. Uma é que qualquer cidadão pode protocolar uma denúncia na Câmara dos Deputados, sem nenhuma consequência para o subscritor, em caso de denúncia infundada. A outra foi ferida pelo relatório da CPI da Covid, quando sugeriu que, na Lei nº 1.079/1950, acresça-se a obrigação de o Presidente da Câmara dos Deputados analisar, em prazo indicado, a denúncia por crime de responsabilidade do presidente e do vice-presidente da República, de ministros de Estado, além de prever, por analogia, o mesmo dispositivo para denúncias contra ministros do STF e o procurador-geral da República processadas pelo Senado Federal. Não à-toa, repousam no gabinete do presidente da Câmara cerca de 130 denúncias contra o presidente Jair Bolsonaro não despachadas.

Evidentemente, não pode ser desconsiderada a fragilidade substantiva do desenrolar da práxis presidencialista, qual seja a de que a ausência de maioria parlamentar é geradora de crises, tendo estado presente no desenlace das crises políticas que ocasionaram o suicídio de Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadro, a deposição de João Goulart, sob o regime constitucional de 1946. Já sob a CF/1988, os presidentes da República sem maioria congressual – Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff – tiveram o impeachment decretado.

De qualquer modo, vale o esforço para encaminhar algum tipo solução para o que o presidente da Comissão denominou “a espada de Dâmocles do impeachment” (Folha de São Paulo, 2/10/21, p. A3). Embora se saiba que, com lei atualizada ou não, o impeachment é um problema que continuará a atormentar a construção institucional brasileira até que se descubra a possibilidade de presidentes da República governarem sem maioria congressual. É possível, a depender de engenho, arte e trabalho.

Filomeno Moraes 

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).