Filomeno Moraes. Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Foto: Ares Soares.

A reforma eleitoral […] De como cumpri esse compromisso de honra, resistindo e sobrepondo-me à pressão dos acontecimentos, atesta-o o Código Eleitoral, já qualificado “carta de alforria do povo brasileiro” […]

Getúlio Vargas

O primeiro código eleitoral brasileiro completa, nesta segunda quinzena de fevereiro, noventa anos de promulgação. É o documento jurídico com que se iniciou a tão cheia de percalços e incertezas, contramarchas e perigos busca  da verdade eleitoral, até chegar-se ao voto direto, secreto, universal e periódico,  disposto na Constituição Federal vigente como cláusula pétrea.

Na conjunto de modificações trazidas à luz pela Revolução de 30, o Código Eleitoral é a concretização da promessa da Aliança Liberal, que entusiasmara o país com –  tal qual proclamou Batista Luzardo na cidade cearense de Missão Velha – a proposta da “missão nova” da modernização política do país pela “justiça e representação”. De fato, logo em fevereiro de 1931, estabeleceu-se a Subcomissão Legislativa – formada por Joaquim Francisco de Assis Brasil, João Crisóstomo da Rocha Cabral e Mário Pinto Serva – destinada ao estudo e à revisão da legislação então vigente, tendo em vista a apresentação de projeto de código eleitoral.  Por fim, por meio do Decreto nº 20.076, de 24 de fevereiro de 1932, foi instituído o Código Eleitoral, para regular “em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições federais, estaduais e municipais”.

O CE/1932  trouxe profundas mudanças legislativas, como o estabelecimento do sufrágio universal e do voto direto e secreto e a instituição da Justiça Eleitoral (com “funções contenciosas e administrativas”) em substituição às comissões legislativas de verificação de poderes. Além do mais, mesmo mantendo a exclusão odiosa dos mendigos, analfabetos e praças de pré, e mantendo também a idade prevista também no texto constitucional de 1891, ampliou substantivamente o colégio eleitoral ao dispor  que “é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”,  devidamente alistado. Assim, o Brasil se antecipava, entre outros países, à França e à Suíça na adoção do voto da mulher.

Por sua vez, foi  o CE/1932  que instituiu o proporcionalismo,  que até hoje – juntamente com a república, o federalismo, o presidencialismo, o bicameralismo e a separação tripartida de   poderes – é uma das colunas-mestras da construção institucional brasileira.   Nas eleições para a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas, passava-se a obedecer ao sistema de representação proporcional,  ultrapassando-se o  debate recorrente entre majoritaristas e proporcionalistas, que vem da época do Império  até aos dias atuais.

O tempo, com as vicissitudes políticas, fez com que, ao CE/1932,  se sucedessem os Códigos Eleitorais de 1935, 1945, 1950 e 1965, além da copiosa legislação extravagante sobre a matéria eleitoral vinda à luz. Noventa anos depois, assiste-se   à tentativa ora surda ora ruidosa de regredir aos prospectos eleitorais da República Velha, com, observadas as coisas que mudam, a nostalgia das eleições “a bico de pena”, como o demonstra a campanha selvagem contra a urna eletrônica. Ou com a tentativa de volta às eleições do que se chamavam as “notabilidades de aldeia”, com a campanha sem quartel contra o voto proporcional. No primeiro caso, basta observar o discurso do atual presidente da República permanentemente assestado contra a conspicuidade da urna eletrônica e os questionamentos deslegitimadores  contra a capacidade da Justiça Eleitoral de administrar eleições livres, justas e idôneas. No segundo, o assalto continuado contra o voto proporcional.

De fato, não é nova a tentação de  extirpar ou relativizar o voto proporcional, com a instituição de um sistema eleitoral puro ou misto. Nos anos de 1980 e 1990, prevaleceu a tentação alemã, isto é, a preferência acrítica pelo que por aqui se chamou de sistema “distrital-misto”. Da década passada para cá, a aposta é no “voto singular não transferível” (ou distritão), pelo que cada estado, nas eleições para deputado federal e deputado estadual, e cada município, nas eleições para vereador, se constituirá em única circunscrição ou distrito, resultando eleitos, afinal, os mais votados em ordem decrescente. No dizer de Jairo Nicolau, o pior sistema eleitoral do mundo. Em 2017, a Câmara dos Deputados rejeitou o distritão. Ano passado, incluído novamente na “reforma política do Centrão”, tal sistema eleitoral foi novamente rechaçado. Apesar dos seus inimigos o voto proporcional, instituído originalmente em 1932, sobrevive.

O primeiro passo da longa marcha da democracia brasileira, representativa, laica e republicana, foi dado com “o primeiro voto na eleição de deputados à Assembleia Constituinte de 1891”, disse Wanderley Guilherme dos Santos. Certamente, também pode-se dizer que o primeiro passo no sentido de realizar a pujante democracia eleitoral que o Brasil tem hoje foi dada com o velho Código Eleitoral de 1932. Que o seu espírito renovador  sobreviva!

 Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou recentemente o livro “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021).