De 2020 para 2021 o número de pedidos de Habeas Corpus no STJ teve um crescimento de cerca de 150%. Foto: Divulgação.

Em parecer enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Ministério Público Federal (MPF) defendeu o entendimento de que, em regra, o princípio da insignificância não deve ser aplicado ao crime de posse e porte ilegal de munições. Também chamado de bagatela, o princípio determina a não punição de crimes que geram uma ofensa irrelevante ao bem jurídico protegido pelo tipo penal.

Na avaliação da subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, autora da manifestação, esse não é o caso de quem mantém ou porta munições sem autorização legal. Para ela, ainda que o artefato não seja utilizado, a simples disponibilidade imediata do objeto coloca em risco a segurança coletiva.

A tese foi defendida ao analisar o Habeas Corpus 705036/RS contra decisão que condenou um cidadão a 2 anos e 8 meses de prisão por portar ilegalmente 31 munições de calibre 9 milímetros. A defesa alega que a conduta do réu é atípica, pois, em momento algum o acusado atentou ou colocou em perigo a incolumidade pública, o que seria requisito necessário para a configuração do crime previsto no Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003).

O MPF rebate o argumento e sustenta que, conforme jurisprudência do STJ, os crimes de posse e porte ilegal de armas e munições são de perigo abstrato, sendo desnecessário comprovar a lesividade concreta da conduta. O bem jurídico tutelado nesses casos não é a incolumidade física, mas a segurança pública e a paz social, colocadas em risco com o porte de munição, ainda que desacompanhada de arma de fogo.

A manifestação traz à tona debate fundamental, que envolve, por um lado, o volume significativo de processos que chegam ao STJ requerendo a aplicação do princípio da insignificância. Por outro lado, a necessidade de considerar as especificidades de cada situação e contemplar os vetores estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a aplicação do princípio da bagatela. São eles: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Dados

Levantamento feito pelo Núcleo de Acompanhamento Criminal da Procuradoria-Geral da República junto ao STJ (Nucrim/STJ) revela que, de janeiro a dezembro de 2021, a aplicação do princípio da insignificância foi requerida em pelo menos 591 habeas corpus e recursos em habeas corpus ajuizados na Corte Superior. Os processos demandaram 1.122 manifestações do MPF. Os números não esgotam o tema, mas dão ideia dos tipos penais em que o pedido da insignificância foi mais recorrente.

A grande maioria dos HCs e RHCs refere-se a crimes de furtos simples (223) e qualificados (181). Em seguida, aparecem delitos como tráfico de drogas e condutas afins (58), crimes do sistema nacional de armas (55), crimes tentados (54), roubo (11), receptação (8), contrabando ou descaminho (7), entre outros tipos penais menos frequentes.

Na avaliação da subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, coordenadora-adjunta do Nucrim/STJ, chama atenção nos dados o aumento de pedidos de aplicação do princípio da insignificância em casos de crimes do sistema nacional de armas. A categoria abrange os artigos 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), que se referem à posse e ao porte ilegal de armas e munições. Vinte e dois processos desse tipo foram enviados para manifestação do MPF em 2020. No ano passado, o número subiu para 55, crescimento de cerca de 150%.

Jurisprudência

Apesar do maior número de pedidos de aplicação da insignificância em crimes relacionados ao sistema nacional de armas, a Terceira Seção do STJ pacificou, em setembro do ano passado, o entendimento da Corte quanto à impossibilidade de emprego do princípio da bagatela nos crimes de posse e porte ilegal de armas e munições. O acórdão no HC 619750/RS é resultado de agravo regimental apresentado pelo MPF contra decisão da Sexta Turma do Tribunal Superior, que considerou atípica a conduta de réu flagrado enquanto transportava 23 munições calibre 38 sem autorização legal.

Ao defender a não aplicação do princípio da insignificância ao caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz, cujo voto foi seguido pela maioria da Terceira Seção, ressaltou que o aumento do número de mortes violentas intencionais no Brasil reforça a necessidade de uma “atuação responsável” do Judiciário diante da apreensão de munições em situação ilegal, sobretudo no atual contexto de maior acesso a armas.

O magistrado destacou que o Tribunal tem a firme orientação no sentido de que a posse ilegal de munição de uso permitido, mesmo sem a arma, caracteriza o crime do artigo 12 da Lei 10.826/2003, no qual se presume a ocorrência de risco à segurança pública, não havendo a necessidade de dano efetivo às pessoas. Para ele, o crime é caracterizado independentemente da quantidade e da existência do conjunto completo (arma acompanhada de munição).

Segundo Frischeisen, além de afastar a aplicação do princípio da bagatela em casos de posse e porte ilegal de armas e munições, o STJ tem demonstrado regularidade quanto à aceitação do emprego da insignificância nos crimes de furtos simples de bens de uso pessoal e gêneros alimentícios e dos furtos tentados. Foi o que aconteceu no caso de uma mulher condenada a 1 ano e 2 meses de prisão por furtar de um supermercado em São Paulo três peças de picanha, avaliadas em R$ 70. Ao analisar o caso (HC 653616/SP), a Corte Superior avaliou que a devolução dos itens furtados e a primariedade da ré possibilitam a aplicação excepcional do princípio da bagatela.

Por outro lado, ainda segundo avaliação da coordenadora-adjunta do Nucrim/STJ da Procuradoria-Geral da República, a Corte Superior tem recusado a aplicação da insignificância nos crimes de furto de cabos elétricos, sobretudo quando a prática é reincidente. Essa foi a posição do STJ ao julgar HC 647785/SP que solicitava o trancamento de ação penal contra um homem que tentou subtrair um rolo de fio de cobre, avaliado em R$ 150, da empresa Logística Ambiental de São Paulo – Logan Transbordo.

Fonte: site do MPF.