Imagem: site Migalhas.

A sanção da Lei Complementar 190, que regulamenta a cobrança do chamado Difal — diferencial de alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre vendas de produtos e prestação de serviços a consumidor final localizado em outro estado —, não encerra a discussão em torno do assunto e poderá levar à criação de um novo contencioso tributário, na opinião de advogados consultados pela ConJur.

Embora o projeto que lhe deu origem tenha sido aprovado no ano passado, a sanção da lei ocorreu somente nesta quarta-feira (05/1). Por isso, como já ocorreu a virada do exercício financeiro e o ICMS é um tributo que exige a observância tanto do princípio da anterioridade anual quanto nonagesimal (90 dias), quando ocorrida a sua instituição ou majoração, o Difal somente poderá ser exigido no próximo exercício financeiro — ou seja, 2023.

A explicação é da advogada Júlia Ferreira Cossi Barbosa, líder da área Tributária Judicial do escritório de direito Finocchio & Ustra Advogados. Segundo ela, além da clara invalidade já para este ano, merece destaque que a Lei Complementar altera o formato de cálculo do ICMS-Difal, elevando a carga tributária para alguns estados. “Assim, a forma de cálculo adotada vai de encontro ao disposto na Constituição Federal, que determina que o Difal seja calculado apenas com base na efetiva diferença entre as alíquotas interestadual e interna do estado de destino”, observa a advogada.

“Ou seja, mesmo depois de anos de discussão no Judiciário sobre o assunto, a Lei Complementar que poderia ter vindo para encerrar por definitivo a questão acaba nascendo com diversos pontos de questionamento, o que acabará por levar a questão para um novo contencioso tributário”, completou.

O advogado Vitor S. Rodrigues, advogado sênior da Consultoria Tributária do Chenut Oliveira Santiago Advogados, observa que a nova lei tem por objetivo regulamentar a instituição e cobrança do Diferencial de Alíquotas do ICMS em operações interestaduais, constituindo-se como desdobramento legislativo do encerramento da discussão judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal que fixou o entendimento de que a referida cobrança pressupõe a edição de Lei Complementar (Tema 1.093) — que nunca havia sido editada.

Embora a decisão do STF seja vinculante, Rodrigues observa que o tema ainda deve gerar discussões judiciais entre os contribuintes e os Estados. “De um lado, porque há uma tendência na contínua aplicação das legislações locais pelos Estados para a cobrança do Difal; de outro, porque já há uma interessante tese que defende, de acordo com a Constituição, que seria necessária também a observância do princípio da anterioridade, ou seja, a cobrança somente seria permitida a partir de 2023”, diz o especialista.

Com isso também concorda o advogado Luiz Henrique Renattini,  especialista em Direito Tributário Contencioso da LIRA Advogados. “Essa é uma discussão que se resolve com a lei lógica do terceiro excluído: ou essa alteração legislativa deve obediência à anterioridade — como o próprio Congresso Nacional reconhece — ou esse primado constitucional, da anterioridade, não se aplica. No caso, até pela forma como foi conduzida toda a tramitação do projeto — com senso de extrema urgência por parte dos Estados —, fica muito complicado defender qualquer argumento que fuja à observância da anterioridade, em toda a sua extensão — anual e nonagesimal”, afirma.

Alessandro Mendes Cardososócio do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados, chama a atenção para outro aspecto decorrente da sanção. Segundo ele, não se sustenta o argumento dos Estados de que não seria aplicável a anterioridade anual, com base na visão fiscalista de que não haveria criação ou majoração de novo tributo e sim a manutenção de uma cobrança já existente.

Ele entende que, como o STF decidiu que a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS não poderia prescindir de edição de lei complementar veiculando normas gerais, a nova lei inovou no ordenamento jurídico. “Isso determina que a cobrança do Difal, com base em sua regulamentação, implica em uma nova incidência, que por força de determinação constitucional fica sujeita ao respeito da anterioridade anual. Fica impedida, assim, a cobrança dessa modalidade de Difal em 2022”, disse.

O advogado Igor Mauler Santiago, que é colunista da ConJur, também entende que os efeitos da lei serão obedecidos apenas no próximo exercício. “Fica para 2023. A lei complementar voluntariamente se submeteu à anterioridade anual e nonagesimal. E o Supremo disse que sem lei complementar não pode haver cobrança, tendo-a autorizado excepcionalmente apenas até 31.12.2021. A questão é de uma simplicidade aritmética”, completou. Quando a lei foi aprovada, Santiago escreveu um artigo explicando em detalhes o funcionamento das novas normas.

O advogado tributarista Hugo Funaro, sócio do Dias de Souza Advogados, chama a atenção para outro aspecto. “Outro ponto controvertido é se as leis estaduais que instituíram o Difal do ICMS antes da lei complementar podem ser por esta ‘convalidadas’. A posição mais recente do STF é de que sim, mas, ainda que tal orientação venha a ser reafirmada neste caso, ela só há de aplicar-se às leis que estejam em conformidade com o que veio a dispor a lei complementar”, argumenta.

A advogada Rejiane Prado, especialista em Direito Tributário e Empresarial do escritório Barbosa Prado Advogados preferiu  analisar a questão sob outro ponto de vista, do aumento da cara tributária. “Novamente, os contribuintes brasileiros foram surpreendidos com a instituição de obrigações tributárias no apagar das luzes de um ano e início de outro. Porém, desta vez, inúmeras incertezas permeiam a legitimidade da cobrança estabelecida, o que fará aumentar ainda mais o tamanho do contencioso tributário no país”, disse.

Segundo ela, um estudo do Núcleo de Tributação do Insper, de janeiro de 2020, mostrou que as demandas tributárias no país correspondem a R$5,4 Trilhões, 75% do PIB brasileiro. Essa é uma medida que demonstra a questionável qualidade do nosso sistema tributário, segundo a especialista, porque, o foco no aumento da arrecadação pelos governos, por vezes, é maior do que a observância a legalidade e o cuidado com a segurança jurídica dos próprios contribuintes.

“O caminho, ao final, são intermináveis ações tributárias, um alto custo com a manutenção do judiciário e com advogados públicos e privados. A economia, como um todo, acaba sendo afetada negativamente pelas falhas de governança na tomada de decisão dos entes públicos, ao definirem a forma e o momento que seus tributos serão instituídos e cobrados, sem se atentar as consequências futuras deste ato”, completou.

Fonte: site ConJur.