Foto: CFM.

A Defensoria Pública da União (DPU) realizou audiência pública para debater a Resolução 1.664/2003 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que trata da necessidade de cirurgias e cuidados com saúde em crianças intersexo, pessoas que nascem com características corporais – como anatomia sexual, órgãos reprodutivos, padrões hormonais e/ou cromossômicos – que não se enquadram nas definições típicas para corpos masculinos ou femininos.

A audiência foi presidida pela defensora regional de Direitos Humanos em São Paulo, Ana Lúcia Marcondes Faria de Oliveira, em conjunto com o Grupo de Trabalho Identidade de Gênero e Cidadania LGBTI da DPU, e contou com a participação de diversas organizações da sociedade civil e pessoas com conhecimento na temática intersexo.

Ainda, houve a apresentação de experiências, vivências, informações e dados com o objetivo de substanciar procedimento de assistência jurídica (PAJ) coletivo que atualmente acompanha e monitora os direitos fundamentais das pessoas intersexo na DPU.

Thais Emília de Campos dos Santos, presidente da Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI), criticou as aplicações práticas da Resolução do CMF, pois não cria aparatos e respaldos para o trabalho dos médicos, por ser considerada arcaica. “A resolução precisa urgentemente de atualização. O que eu vejo é que a criança nasce intersexo. Se ela nasce em SP, sem consentimento dos pais, ela é encaminhada para cirurgia sem nenhuma necessidade de urgência”, comentou.

Mila Torii Correa Leite, professora da Escola Paulista de Medicina e professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), informou que as cirurgias realizadas, seja para reconstrução genital masculina ou feminina, são muitas vezes impossíveis de serem desfeitas. Disse que não são urgentes e, portanto, nenhuma delas deveria ser realizada sem uma discussão multidisciplinar, em conjunto com o paciente ou os pais, para que seja tomada a decisão correta.

Dionne Freitas, diretora executiva da ABRAI, falou sobre sua vida enquanto pessoa intersexo, tendo passado por várias violências psicológicas. Disse que muitas pessoas intersexo são diagnosticadas como incapazes e que passam por longo processo para conseguir serem reconhecidas socialmente. “Somos empurradas para fazer essa cirurgia quando o diagnóstico é tardio, como no meu caso”, disse. Contou, ainda, que os médicos queriam a forçar para o gênero masculino. Apenas aos 20 anos ela conseguiu realizar a cirurgia para a adequação de gênero feminino.

Paula Sandrine Machado, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendeu que as organizações de direitos humanos têm conclamado a não realização de cirurgias desnecessárias em crianças intersexo. “Não é de hoje que temos debatido essa questão e temos dados suficientes para dizer que não devemos apartar os direitos humanos da questão da cirurgia de pessoas intersexo. Os protocolos vigentes são legitimados pela Resolução do CFM, que carece de mudanças profundas por ser arcaica e não condiz com os debates e discussões internacionais.

Marcia Rocha, da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil/Secional SP (OAB/SP), disse que os procedimentos médicos nas crianças intersexo devem se restringir ao limite emergencial. Thamirys Nunes, representante da Aliança Nacional LGBTI+, falou que expor um bebê a uma cirurgia não compulsória atenta aos seus direitos básicos e fundamentais. “Precisamos olhar nossos filhos como indivíduos de direitos. Como vamos respeitar o gênero sem darmos direito a eles de se manifestar e se conhecer sem interferências cirúrgicas desnecessárias?”, falou.

Walter Mastelaro Neto, coordenador do Núcleo de Saúde da Diversidade OAB/SP, falou que desde 2003 houve muitos avanços em relação à intersexualidade. “É imperioso que a resolução seja revista, pois ela não mais faz nenhum sentido em uma estrutura jurídica do Brasil”. Para ele, a Resolução não reflete mais os princípios básicos da bioética. “O que queremos é evidenciar o quão defasada é essa resolução e o quão é imperioso que ela seja alterada para garantir os direitos e a existência das pessoas intersexo para garantir a autonomia e a identidade dessas pessoas”.

Amiel Modesto Vieira, sociólogo, pesquisador e doutorando em Bioética, contou que durante os 33 anos de sua vida que não sabia o que estava acontecendo consigo, que nunca recebeu informações sobre a sua intersexualidade. Nunca lhe foi questionado se ele se sentia bem com os tratamentos. Descobriu que foi operado aos sete meses de idade para o gênero feminino e contou que os pais nunca foram informados realmente sobre sua condição intersexual.

Raul Aragão Martins, professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP), argumentou que a autonomia deve ser entendida como relacional. “Na medida que crianças estão vulneráveis, devemos desenvolver sistemas e condições para que elas alcancem sua autonomia, para poderem ir participando com o tempo das decisões que mudam sua vida. As questões essenciais da sua vida, então, devem ser tomadas unicamente no final da adolescência para que eles tenham uma visão adequada”, disse.

Paulo Iotti, advogado, disse que são raros os casos que necessitam de intervenção cirúrgica nos 48 tipos de pessoas intersexuais “Nos outros casos, a cirurgia é meramente estética, e então ela só pode ser realizada unicamente quando a pessoa concordar, com a espera da maioridade civil ou no respeito da vontade da criança e adolescente. O próprio CFM já reconhece isso, dado que estabelece os critérios de urgência para realização de intervenções cirúrgicas”

Leandro Reinaldo da Cunha, professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), contou que o país mais avançado nessa discussãointersexual é Portugal. “Lá foi apresentada uma nova legislação sobre a identidade de gênero como um todo, com a vedação de qualquer tratamento cirúrgico e farmacológico que venha a gerar modificação a nível do corpo e das características sexuais até que haja a capacidade decisória e salvo se houver risco a saúde”, explicou.

Ana Paula Andreotti Amorim, médica de família e comunidade na atenção primária do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), falou de sua experiência na atenção primária a muitas famílias apavoradas e assustadas pelo nascimento da criança. Ela conta que foram direcionadas para diversos serviços secundários, sendo recomendadas de não fazer o acompanhamento primário, inclusive com sigilo absoluto para os profissionais, para que as crianças nunca descubram que são pessoas intersexo.

Wellington Ronildo Clarindo, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), falou dos aspectos genéticos relacionados com a diferenciação de sexo. “A diferenciação do sexo biológico é muito além dos cromossomos sexuais. As variações devem ser percebidas, mas para muito além disso há muitos aspectos genéticos que devem ser percebidos nos genes com impacto na diferenciação do sexo”, falou.

Barbara Gomes Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), falou que a integridade corporal da população intersexo não deve estar ligada pela perda das suas partes genitais. As práticas cosméticas devem ser vistas como práticas mutiladoras para ter uma vida social e ter acesso aos direitos básicos de saúde universal.

Denison Melo de Aguiar, professor da Universidade do Estado do Amazonas, centrou sua fala na dignidade humana e autonomia da vontade da pessoa intersexo e convidou a pensar numa legislação centrada na pessoa. “Devemos passar por um processo de reeducação”, disse.

Ana Karina Canguçu, psicóloga ambulatorial no Hospital das Clínicas da UFBA, falou da necessidade de rever a assistência à saúde das pessoas intersexo, pautada na dignidade da pessoa humana. Para ela, o intersex precisa ser visto como uma existência possível, cessando o apagamento e a reparação do corpo intersexo.

Pam Herrera, assistente social da Associação Brasileira de Assistência ao Excepcional (ABRAE), argumentou que a família não recebe orientaçãoadequada sobre o que corresponde uma pessoa intersexo para que possa orientar essa criança. “É comum esse assunto se tornar proibido na família, Essa criança se torna invisível correndo graves riscos de ter sua saúde física e mental ser relegada. Onde começa esse pacto de silencio que impacta o desenvolvimento psicossocial da criança intersexo e reflete na sua vida adulta?”, questionou.

Falaram ainda, Rachel Macedo Rocha, advogada e doutorando em ciências pela USP e membro da ABRAI; Carlos Eduardo Carrera, advogado, mestre em Direito Internacional pela USP; Monica Porto, advogada e professora especialista em direito do trabalho e direito previdenciário; e Joel Pires Marques Filho, advogado especialista em direito aplicado à Saúde.

Fonte: site DPU.