Filomeno Moraes. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação.

A sistemática político-constitucional da separação de poderes vivencia mais um teste de fogo, a envolver desta feita o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Tudo por conta do que tem se chamado de “orçamento secreto”, cuja execução ora está suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal.

Na verdade, um vício novo veio a conjugar-se com os vícios antigos do Congresso Nacional, com a  criação, em 2019, da “emenda de relator”, que, devendo ser utilizada com a finalidade de corrigir erros ou omissões de ordem técnica do projeto de lei orçamentária, degenerou-se em uso de verba pública para ação em que o parlamentar que a indicou fica oculto, figurando o relator do orçamento (deputado ou senador) como o repassador.

Ao fim e ao cabo, o mecanismo acaba se constituindo  em poderoso instrumento de barganha política entre os Poderes Executivo e Legislativo, uma manifestação evidente de poder invisível no distribuir 16,8 bilhões de reais, somente neste ano. A tais emendas de relator, com os valores referentes a 2021 –  acrescem-se as  “individuais”, em que cada parlamentar decide onde alocar o dinheiro, com previsão de R$ 9,7 bilhões, a serem divididos igualmente entre os parlamentares; as “de bancada”, ou seja, emendas coletivas, elaboradas por parlamentares do mesmo Estado ou região, com um total reservado de R$ 7,3 bilhões; as “de comissão”, que são emendas coletivas de comissões permanentes da Câmara ou do Senado (não há recursos reservados para esta modalidade de emendas neste ano).

“Paradoxo do sucesso” foi a denominação que o cientista político Guillermo O’Donnell  atribuiu à atividade do Congresso Nacional brasileiro. Comparativista formidável dos processos políticos de transição do que chamava de “autoritarismo-burocrático” – principalmente os dos países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile – para a democracia, O’Donnell traçava como (des) vantagem comparativa da transição brasileira a existência do Congresso Nacional. Diferentemente daqueles países, os quais em regra fecharam os seus órgãos parlamentares, aqui o Congresso Nacional funcionou regularmente durante todo o período ditatorial, com exceção de alguns dias durante a presidência do marechal Castello Branco, de alguns meses que se seguiram à edição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e de cerca de duas semanas, sob a presidência do general Ernesto Geisel. Decerto, o “regularmente” é uma licença não poética de largo espectro, pois, tal (in) atividade foi marcada por diversos constrangimentos, como a própria vigência do AI-5, as cíclicas cassações de mandatos, a precariedade das prerrogativas, o sufocamento da atividade de legislar e fiscalizar, o desprestígio diuturno da atividade política por parte dos notáveis e não-notáveis do regime militar.

De fato, o Congresso Nacional que renasceu com os ventos democratizantes, de um lado,  não precisou de um reaprendizado custoso da atividade parlamentar, de outro, proporcionou a continuidade de vícios existentes antes da ditadura, vícios que existiram durante a ditadura e vícios que permaneceram depois da ditadura. Agora, surge um vício novíssimo, em ação desde o ano passado, que é o mal uso da “emenda de relator”, com o consequente “orçamento secreto”, provocando a destinação de vultosos recursos orçamentários ao arrepio dos comandos do art. 37 da Constituição Federal, nomeadamente, o da publicidade e o da impessoalidade.

Emendas parlamentares podem ser direcionadas por deputados e senadores a suas bases políticas ou estados de origem. Em princípio, não são nocivas ao bem da República, se utilizadas com correção e transparência. Todavia, as emendas de relator são perversamente antidemocráticas e antirrepublicanas. O noticiário dá conta de que redutos eleitorais do Centrão, aliados do governo federal e outros contemplados secretamente são os destinatários privilegiados das emendas de relator. A título de ilustração, veja-se que ao município de Barra de São Miguel, em Alagoas, foram destinados 3,8 milhões provenientes de tais emendas, a serem repassados pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. Por acaso, o superintendente  da Codevasf é primo e o prefeito de Barra de São Miguel, pai, do deputado Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados.

A evolução do processo político mostrou que o Congresso Nacional, transmutado em Congresso Constituinte, formulou o mais importante consenso da história político-constitucional do país, qual seja, a realização da Constituição de 1988. Mais recentemente, o Senado Federal realizou com muito êxito a CPI da Covid-19, talvez a mais relevante atividade do Poder Legislativo nas duas últimas décadas. De outra parte, nos anos que se seguiram à promulgação de CF/1988, outras atividades do Congresso permitem a conclusão de que a “dignidade da legislação” – e não o Executivo nem o Judiciário – é o meio mais democrático para que se cheguem aos resultados mais democráticos, em uma sociedade complexa e de intenso conflito político, como a brasileira. Por tudo, cumpre esconjurar o comportamento antirrepublicano do Congresso Nacional, evitando-se a promiscuidade entre o Legislativo e o Executivo e afastando-se judicialização da política, com o governo dos juízes, mesmo que sejam os STF.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Pós-Doutor pela Universidade de Valência (Espanha).