Desembargador Teodoro Silva Santos é Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Processo Penal pela Universidade Federal do Ceará – UFC e professor de Processo Penal da UNIFOR. Foto: TJCE.

Após quase dois anos (22.01.2020) da decisão liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu a eficácia do instituto Juiz das Garantias, instituído pela Lei n° 13.964/2019, motivada em suposta inconstitucionalidade, cuja decisão se encontra em plena eficácia, foram realizadas nos dias dias 25 e 26 do mês em curso naquela Corte Constitucional, audiências públicas, provavelmente em vista agilizar o mérito das Ações de Inconstitucionalidade ((ADIs) inerentes a temática. Participaram desse grande e democrático debate jurídico representante do Ministro da Justiça, representantes do Conselho Nacional de Justiça, integrantes da Magistratura, do Ministério Público, da advocacia pública e privada, professores de direitos e outros profissionais com atuações na jurisdição processual e penal.

O Juiz das Garantias é parte integrante  do chamado pacote anticrime, um conjunto de temas envolvendo normas penais e processuais que foram debatidas exaustivamente, e posteriormente aprovado no Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República, no dia 24 de dezembro de 2019, com vergência prevista para data de sua publicação.

Importa ressaltar o relevante avanço na busca por um modelo processual democrático ao se instituir a figura do Juiz das Garantias no Código de Processo Penal, por meio da Lei nº 13.964/2019, cujas atribuições estão definidas no extenso dispositivo 3º, o qual abrange da letra A até a letra F, sancionada com o desiderato de aperfeiçoar a legislação processual penal pátria, adequando alguns procedimentos até aquele momento tidos como reflexos da era inquisitorial (antidemocrática) a um modelo acusatório (democrático) compatível com o Ordenamento Constitucional. DE modo que operou-se a cisão do procedimento criminal em dois momentos distintos.

A primeira etapa de atuação do julgador destina-se à investigação criminal, pendida exclusivamente ao controle da atividade investigativa, sob o olhar do Juiz das Garantias, que atuará de maneira passiva, na condição de garante, para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais; é nessa fase que o magistrado, albergado pela cláusula de reserva de jurisdição, exerce  pleno controle das investigações levadas a efeito pela autoridade policial e pelo Ministério Público, notadamente no tocante a eventuais abusos ou arbítrios.

A segunda etapa, denominada de processual ou judicial (ou de cognição originária – instrução e julgamento), é norteada pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, princípio da imparcialidade e outros corolários do devido processo legal, que compreendem a instrução processual até o proferimento da sentença, sob a condução de outro juiz, especialmente para tal fim. Na etapa de cognição natural, o acusado exerce plenamente o direito de defesa, ou seja, o direito à igualdade processual ou paridade de armas.

É nítido o fato de que o Juiz das Garantias estabelece a vedação do exercício da jurisdição em ambas as fases pelo mesmo magistrado, evitando, a partir da divisão de atuações, a convicção e idealização/formação de pré-conceitos no íntimo do julgador, bem como ratificando o princípio da imparcialidade, possibilitando maior efetivação da isenção do julgador.

Com efeito, o Juiz das Garantias não funciona como juiz investigante (juiz instrutor), mas como garantidor da legalidade dos atos praticados ou ainda requeridos pela autoridade investigante ou pelo Ministério Público durante a primeira fase da persecução penal, além da salvaguarda dos direitos individuais, proporcionando o distanciamento entre o juiz e os elementos colhidos na investigação criminal. Ele não age ex-offício.

É cediço o fato de que toda pessoa tem direito a julgamento em tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei. Esse direito de acesso não é absoluto, prestando-se a limitações implicitamente admitidas, porquanto, pela sua natureza, apela a uma regulamentação pelo Estado que pode variar no tempo e no espaço em função das necessidades da comunidade e dos cidadãos.

A figura de um juiz imparcial é determinante para a integração do devido processo legal, pois aqueles submetidos à prestação jurisdicional,  seja  na posição de autores, seja na condição de réus, anseiam por um julgamento lídimo, garantido por uma decisão proferida por um magistrado  desvinculado de qualquer intervenção tendenciosa, interna ou externamente, para um dos lados opositores. A imparcialidade é a essência da efetiva prestação jurisdicional, a equidistância dos interesses em jogo;

A imposição da estrita observância da imparcialidade do magistrado, não se limita ao processo penal brasileiro. Vai mais além! Enfim, o direito de ser julgado por um juiz imparcial consta em um encadeamento de documentos internacionais que tratam sobre direitos humanos de cujos Tratados o Brasil é signatário, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) – Pacto de San José da Costa Rica, este  incorporado ao Ordenamento Jurídico pátrio pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.

Nessa óptica constitucional o juiz das garantias é o modelo adotado por países europeus e latino-americanos, a exemplos, Itália, França e Portugal, assim como Argentina e Chile, este último, por vários motivos, conseguiram estruturar um sistema processual penal acusatório mais consistente e referência, obviamente, guardando as peculiaridades de cada um País, talvez, por ter superado um forte sistema inquisitório, antigarantista e fascista, fruto de um longo período autocrático, ditatorial militar, iniciado na década de setenta de obra do ditador general Augusto Pinochet que reinou até 1990.

É contra essa contextualização que introduziu o Juiz das Garantias no ordenamento jurídico brasileiro que foram ajuizadas quatros Ações de Inconstitucionalidade (ADIs), em face do instituto do Juiz das Garantias,  dentre as quais se constata a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, tendo o  Ministro Luiz Fux, concedido decisão liminar no sentido de suspender a eficácia do retrocitado instituto processual penal.

Ao analisar a decisão do ministro Luiz Fux acerca da constitucionalidade do Juiz das Garantias, percebe-se que sua motivação centrou-se em eventuais vícios formais em relação às regras de iniciativa legislativa. Em síntese, mencionou-se a violação da competência concorrente dos Estados-membros de legislar sobre os procedimentos em matéria processual (art. 24, XI, § 1º, da Constituição da República), e da competência legislativa do Poder Judiciário de legislar  sobre as normas de organização judiciária (art. 96, I, “a” e “d”, II, ‘b” e “d”, da  Constituição da República).

Em relação ao argumento de violação da competência legislativa do Poder Judiciário de legislar sobre as normas de organização judiciária (art.  96, I, “a” e “d”, II, ‘b” e “d”, da Constituição da República), observa-se que a nova legislação, ao dispor sobre o Juiz das Garantias, não institui cargo ou órgão público, mas tão somente especifica o magistrado que atuará na resolução das controvérsias da fase de investigação, que ficará impedido de processar e julgar os mesmos fatos na fase posterior à da admissibilidade da acusação.

Os argumentos alusivos à inconstitucionalidade por violação ao artigo 24, inciso XI, e § 1º da Constituição Federal da República de 1988, dada a competência concorrente dos Estados-membros para legislar sobre os procedimentos em matéria processual também não prospera, tendo em vista que a regra introduzida no Código de Processo Penal é de natureza processual, relacionada aos critérios de fixação da competência conforme os atos processuais praticados.

Nesse contexto, objetiva-se compreender que o Juiz das Garantias intenta modificar as regras de competência e os impedimentos processuais o que torna esse instituto perfeitamente compatível com as normas constitucionais que preconizam à União legislar, privativamente, entre outros  temas, sobre Direitos Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho (art. 22, I, da Constituição Federal).

No que tange a inconstitucionalidade por ausência de dotação orçamentária, a meu ver, também não há de prosperar, haja vista que o instituto do Juiz das Garantias propõe uma redistribuição de competências e, obviamente, não demanda uma nova estrutura no âmbito do Poder Judiciário. Limita-se apenas uma reorganização da estrutura vigente e, consequentemente, uma imperativa transformação da concepção que norteia a atuação do magistrado na fase pré-processual. Nesse sentido, não se trata da instituição de cargo, mas de um magistrado natural, com jurisdição penal limitada à etapa de investigação preliminar criminal, cujas atribuições permanecem a cargo da Lei Orgânica ou do Regimento Interno de cada tribunal.

Superada as questões atinentes a inconstitucionalidade do Instituto do Juiz das Garantias – guardião do sistema acusatório, do juiz natural, da imparcialidade e outros princípios corolário do devido processo legal -, tenho que, sob à óptica de uma perspectiva constitucional e dos Tratados e Convenções Internacionais, este instrumento processual penal constitucional deve ter uma aplicação indistinta sempre que  houver a necessidade do exercício do jus puniendi – direito de punir do Estado, decorrente da violação de um bem jurídico tutelado pela normal penal incriminadora.

Nesse contexto, em consonância com o conjunto de normas e princípios legais e constitucionais pátrias, bem como documentos (Convenção e Tratados Internacionais), mencionados neste modesto artigo, entendo que o Instituto do Juiz das Garantias, ora suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, é constitucional e deve ser aplicado em todas às espécies de jurisdições penais, tanto a comum quanto a especial, bem como nos Tribunais – nas ações penais originárias prevista na Lei nº 8.038/90 -, aplicadas quando o agente político imputado da prática de crime perpetrada em razão do cargo, função ou ofício.

À evidencia, cônscio estou que as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que pleiteiam a declaração de inconstitucionalidade de artigos da Lei nº 13.964/2019, dentre eles aquele (art. 3º-A e seguintes) que instituiu o Juiz das Garantias, nas quais alberga a referida decisão liminar de suspensão, ainda vigente,  não devem prosperar pela ausência absoluta de inconstitucionalidade formal ou material, ou seja, devem ser julgadas improcedentes, e, por via de consequência, consagrada a plena eficácia do referido  instituto processual de índole constitucional reputa-se deveras legítima.

Destaque, por fim,  que essa é a minha nítida convicção acadêmica acercado do Instituto do Juiz das Garantias,  fruto de quase quatro anos de pesquisas cientifica com o corte epistemológico nas legislações, doutrinas e precedentes brasileiras,  e de alguns Países da Europa e da América Latina, no Curso de Doutorado em Direto Constitucional da Universidade de Fortaleza-UNIFOR, cuja Tese Doutoral intitulada “O JUIZ DAS GARANTIAS SOB A ÓPTICA DO ESTADODEMOCRÁTICO DE DRETO, Adequação ao Ordenamento Jurídico Brasileiro”, foi defendida e aprovada com pleno sucesso, em novembro de 2019.

Contudo, a palavra final quanto a questão sub judice cabe ao Excelso Supremo Tribunal Federal, Guardião da Ordem Constitucional brasileira, em respeito ao Estado Democrático de Direito.

Resta, pois, aguardar com serenidade a data e resultado desse grande julgamento que, sem dúvida, de qualquer forma, há de impactar no sistema de justiça penal pátria.

Teodoro Silva Santos, Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Processo Penal pela Universidade Federal do Ceará – UFC e professor de Processo Penal da UNIFOR.