Arte: Ascom/CNJ.

Quem mata outra pessoa no Brasil tem grandes chances de não pagar pelo crime que cometeu, mesmo se for indiciado pela polícia, denunciado pelo Ministério Público e levado a júri popular pelo Poder Judiciário.

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que um em cada três processos (32%) julgados pelo Tribunal do Júri – homicídios, sobretudo – entre 2015 e 2018 terminou sem veredito, após tramitar, em média, oito anos e meio.

O principal motivo da impunidade é a demora para se julgar o crime. Na contramão da tendência nacional, porém, alguns juízes se destacam pela quantidade de crimes julgados no ranking de desempenho dos tribunais do júri elaborado pelo CNJ. A seguir, eles contam como é a luta contra o tempo e por que a tarefa não é tão simples quanto parece.

Gestão processual estratégica é um conceito-chave para entender o desempenho do Tribunal do Júri de Samambaia/DF, de acordo com o juiz titular, Fabrício Lunardi. À frente da Vara desde 2017, o magistrado conquistou duas vezes o primeiro lugar no ranking do CNJ. No Júri da segunda cidade mais populosa do Distrito Federal, com 254 mil habitantes, Lunardi e equipe conseguiram reduzir a quantidade de processos não julgados, ao final do ano passado, a 31,9% da quantidade de ações que chegaram à Vara ao longo de 2020. Foi a taxa de congestionamento dos processos mais baixa registrada nos júris do Brasil.

A criminalidade contra o júri

Além da legislação ultrapassada, além do volume anual de homicídios e de alguns advogados que trabalham contra o fim dos julgamentos de seus clientes, o Tribunal do Júri enfrenta o problema da modernização da criminalidade. Com facções criminosas de atuação nacional, dentro e fora do sistema prisional, as chacinas são mais frequentes, as circunstâncias tornam os crimes mais complexos e a intimidação de vítimas, sobreviventes e testemunhas se instalou. Nas favelas, onde acontecem grande parte dos homicídios, “o medo e o pavor dificultam a instrução e a produção de provas. O índice de insucesso de intimação por rotatividade de endereço é elevado”, afirmou o juiz Antônio Josimar, titular da 2ª Vara da Comarca de Fortaleza.

Há dois anos no posto, o magistrado atuou os 23 anos anteriores em comarcas menores do interior do Ceará, onde é mais fácil localizar testemunhas, acusados e vítimas. Agora conta com uma delegacia de apoio ao Judiciário que localizam as testemunhas e as conduzem ao fórum sempre que o juiz ordena. No entanto, com a pandemia, sua Vara teve de recorrer às videoconferências. Para evitar que o andamento do processo seja interrompido pela ausência de depoentes, o juiz permite que a internet seja usada para se ouvir quem participa do processo, inclusive réus presos “desde que haja boa conexão, com algum programa de videoconferência (imagem e som) instalado no celular da pessoa”, afirmou.

O processo de racionalização do trabalho liderado pelo juiz Antônio Josimar levou a 2ª Vara da Comarca de Fortaleza ao terceiro lugar no ranking nacional dos tribunais do júri promovido pelo CNJ com base na taxa de congestionamento nas varas do júri em 2020. A unidade conseguiu baixar a proporção entre o número de processos sem sentença a 49% da quantidade anual de novas ações penais do júri. O “estoque” de processos por julgar atingiu a marca de 474 ações em curso no mês de fevereiro de 2021. O Ceará foi o estado onde o número de mortes violentas mais aumentou no ano passado: 81% de alta em relação a 2019.

Seis anos e oito meses sem julgamento

Ao final de 2018, os julgamentos de acusados por crime doloso (intencional) contra a vida que ainda não tinham sido finalizados tramitavam na Justiça havia seis anos e oito meses. A demora seria ainda maior se contassem o tempo decorrido entre a data do homicídio e o dia da sessão de julgamento daquele que polícia e Ministério Público apontam como autor do crime. Os dados estão no “Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri 2019”, realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.

Desburocratizar o ato da intimação por meio do telefone e até de aplicativos de mensagens instantâneas, como já fazem algumas varas do júri, é uma forma de evitar o adiamento de um momento crucial da primeira fase do processo, a audiência de instrução do processo. É nessa ocasião que se colhem depoimentos que confirmem ou não que o crime aconteceu e indiquem quem o cometeu. No entanto, essa é apenas uma das etapas a serem cumpridas em meio a uma lista de atos processuais que precisam ocorrer até que o acusado finalmente sente no banco dos réus, diante dos sete jurados que vão decidir se é culpado ou inocente.

Mudanças na lei necessárias

Para melhorar o funcionamento do Tribunal do Júri, o CNJ instituiu em fevereiro de 2019 um Grupo de Trabalho com magistrados de diferentes instâncias para estudar formas de mudar procedimentos do júri para poder julgar mais responsáveis por crimes e assim diminuir na sociedade a sensação de que quem mata não é punido. Ao final daquele ano, o grupo apresentou um anteprojeto de lei para eliminar gargalos desse tipo de julgamento. Em fevereiro de 2020, o texto foi entregue ao então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e ao relator da Reforma do Código de Processo Penal (CPP), deputado João Campos. O coordenador do GT e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Rogério Schietti Cruz, não é otimista em relação a uma alteração do júri via Congresso Nacional, apesar de considerar “pragmática” a proposta apresentada pelo grupo de juristas.

O GT sugeria, por exemplo, mudar o passo a passo do Tribunal do Júri para dar mais efetividade à sessão de julgamento, por exemplo. Uma medida sugerida foi reduzir o tempo dos debates orais da sessão, em ações penais de menor complexidade, se o Ministério Público e a Defesa do réu concordassem. As réplicas para defesa e acusação, previstas na lei atual, podem se estender por horas. O texto previa também punição administrativa e multa para o advogado de defesa que abandonasse o plenário durante o júri, sanção também aplicável à acusação. Para incentivar os jurados a aceitar participar do conselho de sentença, diante de tantas recusas, o anteprojeto assegurava remuneração aos jurados assim como proteção de eventual demissão em função do dia de trabalho dedicado a uma sessão do júri.

De acordo com o ministro Rogério Schietti, o modelo brasileiro do Tribunal do Júri é anacrônico, pois herdou parcialmente a forma do modelo de júri praticado no Reino Unido e sobretudo nos Estados Unidos, sem importar a racionalidade necessária para dar conta da quantidade de homicídios praticados no Brasil. De acordo com o Monitor da Violência – iniciativa do Portal de Notícias G1, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública -, enquanto 305 mil pessoas foram assassinadas entre 2014 e 2018, os tribunais do júri em todo o país iniciaram apenas 136 mil ações penais no mesmo período, em levantamento do CNJ.  

A impunidade em números  

O descompasso entre a velocidade das mortes violentas e a resposta da Justiça é ainda maior se considerarmos que os 136 mil processos não se referem apenas a homicídios; o número inclui ainda as tentativas de assassinato e demais espécies de crimes dolosos contra a vida. O número tampouco representa o número de pessoas condenados pelo júri popular. Esse tipo de processo geralmente resulta em condenação na metade das vezes (48%). As já citadas “extinções de punibilidade” representam 32% do desfecho de um caso do júri, enquanto 20% dos acusados acabam absolvidos pelo conselho de sentença.

O fato é que as ações penais de crimes cometidos para matar outra pessoa se acumulam sem julgamento – 186 mil, na última contabilização do CNJ, em 2018 –, os homicidas seguem impunes e o tempo joga a favor de quem mata. Entre 2015 e 2018, 14% de todos os crimes levados a júri popular no Brasil prescreveram.

Recursos adiam fim dos processos

“Nossa herança é basicamente americana, mas lá não existe o procedimento bifásico nos nossos moldes. Segue-se muito mais como um processo comum. Aqui no Brasil, além das duas fases, temos uma pletora (abundância) de recursos contra a pronúncia do acusado que podem levar anos para serem julgados no STJ ou STF. Depois, ainda se têm os recursos contra o mérito da decisão do Tribunal do Júri, pois é um tipo de ação penal sujeito a muitas nulidades. São muitos detalhes formais, como um jurado que olha para outro ou para o réu, que podem suscitar um recurso pedindo a anulação de todo o processo do júri. A discussão das nulidades pode resultar em um cenário kafkiano”, afirmou o ministro Schietti, em referência ao romance “O Processo”, do autor tcheco Franz Kafka, em que o protagonista torna-se réu em um processo sem saber do que é acusado, em meio a um Sistema de Justiça autoritário e burocrático.

Outro produto do GT coordenado pelo ministro foi a recomendação que o Plenário do CNJ aprovou em outubro de 2019. Uma das medidas que os tribunais deveriam adotar – mobilizar seus órgãos colegiados para julgar recursos em relação a julgamentos do júri – foi seguida pelo STJ no mês seguinte, novembro, quando a justiça criminal do país realiza o Mês Nacional do Júri. As duas turmas dedicadas a ações penais na corte julgaram 1.363 recursos que questionavam decisões ou atos do júri. Em 312 dos casos analisados pelos ministros da justiça criminal do STJ, a decisão viabilizou a retomada de julgamentos de pelo menos três centenas de homicídios que estavam suspensos enquanto a instância superior não decidisse.

De acordo com o juiz titular do Tribunal do Júri de Brasília, Paulo Giordano, recorrer da decisão dos jurados até as últimas instâncias pode ser apenas uma forma de adiar uma condenação iminente. E a defesa de um acusado de homicídio tem à disposição uma fartura de recursos a impetrar de acordo com os diferentes momentos do andamento do processo: habeas corpus para nulidade do júri, recurso em sentido estrito, embargo infringente, recurso especial (STJ) ou extraordinário (STF), agravo regimental, embargo de declaração.

“A própria lei abre a possibilidade para manobras que atrasam marcha do processo, principalmente no dia da sessão do julgamento, que é só etapa final do processo. Não estou generalizando nem querendo criminalizar a advocacia, mas quem não age dentro da lei tem diversas possibilidades no dia da sessão”, afirmou o juiz. Giordano, titular da Vara que ficou em segundo lugar no ranking nacional de desempenho do Tribunal do Júri, reduziu a taxa de congestionamento da Vara a 43,3%. Para cada quatro processos sem solução, 10 novos entraram em 2020.

Além de creditar o resultado a uma nova dinâmica da gestão do cartório, setor responsável por intimações e pelo trabalho administrativo do tribunal do júri, o magistrado adota uma postura “firme” enquanto juiz que preside os julgamentos que vão a júri popular, “sem ferir direito à ampla defesa nem de acusar do Ministério Público”. Giordano se refere a negar pedidos encaminhados geralmente pela defesa para atrasar um processo que já levou anos para chegar até a fase da sessão do júri – em média quatro anos e quatro meses quando termina em condenação e cinco anos e um mês, quando o réu é absolvido.

“Quando o processo está na véspera de ser julgado e vem manifestação da defesa, no caso de o réu estar solto, começam a ser feitos pedidos de adiamento, com base em novas provas, perícias inúteis para o esclarecimento dos jurados. Também são arroladas testemunhas em locais distantes para evitar que sejam intimadas e não compareçam ao fórum no dia da sessão, o que configura adiamento do julgamento”, afirmou.

Fonte: Agência CNJ de Notícias.