A Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) instaurou uma orientação inédita à atuação das defensoras e defensores para detectar casos de tortura e outras violências. Editada pela defensora geral Elizabeth Chagas, a medida é fruto de articulações com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Associação de Prevenção à Tortura (APT), organização não governamental de origem internacional e referência mundial na temática.

A partir de experiências exitosas da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), um protocolo e um formulário foram elaborados pela DPCE para defensores e defensoras cearenses conseguirem identificar e registrar com mais facilidade casos de agressão, abuso, tortura, violência psicológica ou outro tratamento cruel – e, assim, fazerem os encaminhamentos necessários a cada tipo de ocorrência.

As tratativas para elaboração dos documentos iniciaram em agosto do ano passado, quando da realização de workshop sobre a questão no qual CNJ e APT propuseram à Defensoria a paramentalização dos atendimentos dessa natureza em todo o Estado. “O que estamos fazendo é lançando protocolos para quando o defensor e a defensora se depararem com uma situação de tortura terem um norte e orientação de atuação, possibilitando à instituição colher os dados e melhorar serviços. Neste sentido, também o formulário eletrônico é uma novidade que vai nos ajudar a formar um banco de dados fundamental para dimensionarmos o universo dessa demanda de maneira fidedigna”, afirma Elizabeth Chagas.

Protocolo e formulário são amparados em pactos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, além de seguirem entendimentos internos do país sobre a necessidade de preservação da integridade de qualquer indivíduo envolvido numa ocorrência policial. Por isso, é fundamental que qualquer indício de violência seja formalizado e denunciado com a maior brevidade possível.

“A tortura ainda é uma tônica das prisões feitas em flagrante. Essa má prática não condiz com o Estado Democrático de Direito e deve ser coibida através de políticas públicas. Esse protocolo será fundamental, uma vez que a partir da padronização do comportamento que os defensores devem ter em audiências de custódia nós vamos dispor de elementos empíricos para que políticas públicas mais eficazes possam ser adotadas por parte do poder público. O protocolo está de acordo com instrumentos normativos da mais absoluta importância, como o Pacto de San José da Costa Rica, as regras de Istambul, além, obviamente, da Constituição Federal. É um marco na atuação da Defensoria no que diz respeito ao combate à tortura”, sintetiza o defensor público titular da 17ª Vara Criminal da Comarca de Fortaleza (exclusiva para audiências de custódia), Delano Benevides.

Os documentos (protocolo e formulário) propõem uma série de questionamentos que devem ser feitos pelo(a) defensor(a) em qualquer tipo de atendimento, inclusive se o(a) assistido(a) tiver sido preso em flagrante e for participar de uma audiência de custódia. “Com esses instrumentais, o defensor vai poder fazer uma entrevista mais focada, com mais qualidade e saber a que tipos de indícios deve estar alerta. Porque tortura não é só a violência física”, pontua a assessora jurídica e representante da APT no Brasil, Sylvia Dias.

Comentários vexatórios, ameaças à família, constrangimentos e toques não consentidos são exemplos do que agentes de segurança não podem fazer, além, claro, da agressão física. Ocorrências com mulheres também precisam de atenção especial. Em geral, alerta a APT, elas sofrem tortura ligadas ao corpo em questões de desnudamento, falas libidinosas etc. Por isso, tanto o protocolo quanto o formulário dispõem de seções exclusivas para demandas de gênero.

Também há no documento o componente de raça, já que boa parte do público da Defensoria é de pessoas negras, moradoras de periferia e em situação de vulnerabilidade. “Algumas ações a gente não associa à tortura e são tortura. Há casos de mulheres apalpadas como forma de intimidação, de jovens abordados sob ameaças do tipo “ou você fala onde está a droga ou vai apanhar” etc. São várias situações, cada uma demonstra uma intenção e essa intencionalidade é importante ser demonstrada para comprovarmos depois. É a esse tipo de indício que os defensores precisam estar atentos. Só assim vamos ter dados mais reais e vamos poder desafiar os dados oficiais dos tribunais de justiça, que muitas vezes não registram todos os relatos de tortura. No Rio, por exemplo, o TJ dizia que esses relatos estavam em 12% das pessoas levadas a audiências de custódia, enquanto a Defensoria identificou 35%”, acrescenta Sylvia Dias.

Segundo ela, apenas Ceará e Pernambuco até o momento estão replicando a experiência fluminense, cuja expectativa é de tornar o trabalho do defensor mais ágil, mais eficaz e mais eficiente, já que o mesmo formulário será aplicado em todo o Estado e, de posse das respostas, a DPCE poderá atuar com ainda mais segurança jurídica, em especial nos casos de tortura relatados em audiências de custódia – que, por lei, devem ocorrer em até, no máximo, 24 horas após a prisão em flagrante e, por isso, conserva aspectos fundamentais à elucidação do crime.

Coordenadora no Ceará do programa Fazendo Justiça, do CNJ, Nadja Furtado Bortolotti, classifica a Instrução Normativa da DPCE como uma medida de fortalecimento e aprimoramento das audiências de custódia. Ela afirma que o estado tem se empenhado para notificar da maneira mais fidedigna os registros de tortura, mas que o percentual ainda é pequeno (nacionalmente, segundo levantamento do CNJ, na casa dos 5% entre 2015 e 2019) e com grandes chances de haver subnotificação.

“Precisamos que o número notificado corresponda ao que de fato acontece. E o programa [Fazendo Justiça] vem, desde o início de 2019, trabalhando para o fortalecimento da audiência de custódia como um todo. Nesse sentido, a atuação da Defensoria Pública é fundamental para o enfrentamento dos desafios que a gente sabe que ainda existem no Brasil. Essa Instrução Normativa vai contribuir para que todos os defensores adotem o mesmo procedimento e que os casos atendidos pela Defensoria alimentem um sistema de dados que vai nos ajudar a termos dados mais concretos e mais reais”, afirma.

Para Nadja Bortolotti, o protocolo e o formulário vão ajudar defensores e defensoras num refinamento do olhar sobre demandas de tortura. “A gente acredita que vá contribuir com o trabalho deles na ponta. Porque, na verdade, eles já vêm fazendo isso, só não de forma sistematizada. Vamos, agora, poder ter informação de todo o estado. Quando a gente tem esses dados, é possível pensar em estratégias de atuação. E há um desafio interinstitucional de todo o Sistema de Justiça para qualificar os relatos de tortura, termos uma coleta do máximo de indícios possíveis e estabelecermos mecanismos eficazes”, frisa.

Fonte: Site da DPCE.