Filomeno Moraes é Cientista Político. Professor Universitário. Doutor em Direito e livre-docente em Ciência Política. Foto: Divulgação.

Talvez, pelo nível de preocupação que despertou, um fato político relevante destes primeiros meses de 2021 – marcados pela peste da Covid-19 e pelos ataques dos inimigos íntimos da democracia brasileira – tenha sido a publicação da “conversa com o comandante”, organizada pelo antropólogo Celso Castro e publicada pela editora da Fundação Getúlio Vargas. A conversa tomou o modelo de uma história de vida, compreendendo desde as origens familiares até tempo presente, e teve como interlocutor o general-de-exército Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro (EB) entre 5 de fevereiro de 2015 e 11 de janeiro de 2019.

Castro, que integra o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), já tem uma larga folha de serviço bibliográfico sobre a instituição militar brasileira, como autor ou coautor, organizador ou coorganizador de livros e coletâneas, entre os quais os seguintes: Researching the military (2016), Qualitative methods in military studies (2013), Exército e nação (2012), Antropologia dos militares (2009), O espírito militar (2004), A invenção do Exército brasileiro (2002), Militares e política na Nova República (2000), Ernesto Geisel (1997), Os militares e a República (1995), além da série de oito livros sobre os militares na história brasileira pós-1964, que inclui a trilogia Visões do golpe (1994), Os anos de chumbo (1994) e A volta aos quartéis (1995).

Por sua vez, desde o nascimento até 2019, quando foi transferido para a reserva, Vilas Bôas pertenceu ao ambiente castrense, primeiro como filho de militar, depois como estudante da Escola de Preparação de Cadetes do Exército (Campinas-São Paulo) e da Academia Militar das Agulhas Negras, e, em seguida, galgando todos postos da carreira das armas, de aspirante a oficial de infantaria a general de quatro estrelas. Nesse interim, além dos cursos militares necessários ou eletivos, foi adido militar na China por dois anos, comandante militar da Amazônia e, por último, comandante do Exército Brasileiro.

O tempo de comandante do EB de Vilas Bôas transcorreu durante as breves presidências de Dilma Rousseff e Michel Temer e pouco mais de um mês da de Jair Bolsonaro, tempo marcado, pois, por importantes e decisivos eventos – não necessariamente para o bem da República -, como o impeachment de Rousseff (2016), a sucessão pelo vice-presidente Michel Temer (2016-2018) e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Em suma, uma conjunção de acontecimentos que, em certo sentido, viraram de ponta-cabeça o processo político, fazendo com que a “conversa com o comandante” lance luz e traga medo para o experimento político-constitucional iniciado com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

As entrevistas de que se originaram o livro – realizadas nos meses de agosto e setembro de 2019 – tiveram de ser feitas de maneira rápida, dada as limitações em crescendo do entrevistado, portador de esclerose lateral amiotrófica (ELA), diagnosticada em meados de 2016 e tornada pública em março de 2017. Segundo Castro, “apesar da limitação física, o general estava com sua capacidade intelectual totalmente preservada e muito disposto a falar sobre sua vida”. Transcrita a gravação e editada por Castro em formato de livro, a versão foi enviada ao general Villas Bôas para a revisão, em setembro de 2019, que devolveu o escrito sete meses depois, com um acréscimo de cerca de trinta por cento no conteúdo. O livro, ao longo das suas três centenas de páginas, encerra dezesseis capítulos que tratam de “a infância e a vocação para a carreira militar” até a “ELA, a doença”, entremeados, entre outros, pelo “o anticomunismo”, “na China”, “Anistia, Comissão da Verdade e memória histórica”. Contudo, três capítulos, o 9, o 12 e o 14, merecem atenção especial, pelo material capaz de ajudar no diagnóstico da presença militar no quefazer político nacional da atualidade.

No entanto, é o capítulo “12. O tuite do comandante” o mais explosivamente revelador da presença – lembrando o livro clássico do brasilianista Alfred Stepan – de “os militares na política”, quer pelo oceano de incertezas que acrescentou aos tempos sombrios no ensaio de democracia pós88 quer pelo temor do retorno de fantasmas que se pensavam completamente esconjurados. Nesse capítulo, o Villas Boas dá conta de que o seu tuíte – postado na véspera do julgamento de um habeas corpus requerido pelo ex-presidente Lula ao Supremo Tribunal Federal, foi levado à discussão interna, da qual participaram, inclusive, oficiais-generais do Alto Comando. A primeira versão, preparada no gabinete do comandante, recebeu emendas, acabando por prevalecer o texto mais edulcorado proposto pelo então ministro da Defesa. Destarte, não é absurdo concluir que a mensagem do comandante não foi um alerta, mas um ultimatum, qual seja o de que, a decisão do STF no tal habeas corpus só poderia ter um resultado, a negação do pedido. Agora, a pergunta que não quer calar é, pois, se o guardião da Constituição julgou o caso com independência ou coacto pelo poder militar.

As revelações contidas na “conversa com o comandante” parecem apontar no sentido de que velhos dogmas, surradas narrativas, arraigados preconceitos continuam vivos, como a superioridade moral do poder militar em relação ao poder civil, a repulsa à pauta do meio-ambiente, da questão indígena, da verdade sobre o golpe de 64 e a ditadura de vinte anos dele decorrente. Além do mais, observa-se a justificação da presença da “família militar” (a expressão é de Vilas Bôas) nas manifestações políticas iniciadas com as jornadas de 2013 e detectam-se alguns indicadores de que a construção da candidatura de Bolsonaro foi uma espécie de operação de estado-maior. Tudo, parece desfazer algumas ilusões que se mantiveram até recentemente sobre o fim do que se denominava até um passado recente de “poder moderador” dos militares na política brasileira.

Em meados dos anos 1990, outro brasilianista, Wendy Hunter, num livro acerca da erosão da influência militar no Brasil, formulou o juízo segundo o qual, “sob o risco do exagero, as condições dos anos 80 e 90 converteram os militares brasileiros em algo parecido a um tigre de papel”. Se foi assim em algum momento, a “conversa com o comandante” indica que a fera se transmutou em algo a ser inevitavelmente domado pela política democrática. Por conseguinte, com o sinal trocado, ecoa a palavra do comandante no seu famigerado tuíte de 2018, a saber, “resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem País e das gerações futuras”. Leia-se: nos limites do poder militar, e no desvelamento e contenção dos poderes invisíveis e dos inimigos íntimos da democracia.

Filomeno Moraes
Cientista Político. Doutor em Direito (USP) e Livre-docente em Ciência Política (UECE). Ex-Professor Visitante na Universidade de Valência
(Espanha).