Cesar Asfor Rocha é advogado.

É de Oscar Wilde, mas bem que poderia ter sido dita pelo Ministro Marco Aurélio nos primeiros anos de sua atuação como ministro do Supremo Tribunal Federal, a afirmação segundo a qual “não me diga que concorda comigo, pois quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão de que estou errado”, isso pela frequência com que proferia votos vencidos.

Agora, quando o Ministro Marco Aurélio completa 30 anos de judicatura no Supremo Tribunal Federal, oferece-se a oportunidade de uma reflexão sobre a contribuição por ele dada à Justiça brasileira, nessas três décadas ininterruptas de sua atuação na Corte Suprema e nas três vezes em que ele, em experiência rara, foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Um tempo curto para a avaliação de sua trajetória na história do Supremo, mas longo o bastante, em termos de duração de uma vida humana, para ensejar a manifestação de juízos definitivos a seu respeito.

Penso que o Ministro Marco Aurélio conseguiu estabelecer, em todos os grandes e notáveis julgamentos de que participou — alguns com nítido e irrecusável conteúdo paradigmático —, um segundo olhar sobre a relação jurídica examinada, provocando, com o seu voto, uma espécie de outro viés analítico ou epistemológico, a expor a relevância de sua apreciação, na construção do sistema judicial do nosso futuro.

Nesse sentido, acendeu um farol orientador da percepção mais segura das coisas que, em geral, são apresentadas sob uma forma resistente de conhecimento que tem mais de conservadorismo do que de histórico e atual. Ora, o nosso saber é cheio de rupturas, de descontinuidades e de falhas de percepção, de modo que nem sempre se pode afirmar que certas realidades são sólidas o suficiente para dispensar aportes novos e inovadores, que não raras vezes se convertem na própria forma de expressão dessa mesma realidade, em tempo tão curto e rápido que chega a nos surpreender e espantar.

Essas relações ocultas — ou invisíveis — são reveladas pelos votos dos julgadores que não se curvam ao peso dogmático do que já se sabe e, sem desfalecimento ou rendição, teimam, por assim dizer, em afirmar uma forma de verdade que somente eles percebem e que aos olhos dos outros surge como se fosse apenas a obstinação de uma resistência tenaz, mas improveitosa.

É claro que estou me referindo aos muitos e eruditos votos vencidos que o Ministro Marco Aurélio proferiu na Corte Suprema, mas eu os vejo, agora, na consideração que podemos fazer, já que estamos no tempo do seu futuro. Quando os votos vencidos são manifestados, eles se acham no seu próprio e rígido presente, mas agora — repito — que nos achamos no seu futuro, estamos a perceber que eles — aqueles votos — se anteciparam ao seu porvir.

Ministro Marco Aurélio. Foto: STF.

Quem se der ao trabalho de coletar os votos vencidos do Ministro Marco Aurélio certamente vai experimentar um tipo de pasmo intelectual, ao constar que muitos deles — precisamente os que mais dissentiram do entendimento sugerido pela conformação — se tornaram a doutrina da atualidade.

Isso não é algo que possa ser debitado ao acaso ou à fortuidade das coisas, embora essas sejam forças que não podemos desprezar. Penso que tal se deve, essencialmente, a uma especial vocação futurística ou à consciência mais próxima das verdades que o súbito futuro nos reserva. Talvez se possa mesmo dizer que é a premonição da chegada prematura desse futuro que já bate à nossa porta.

Não vou me lançar à tarefa, que seria gigantesca, de relacionar os casos em que o Ministro Marco Aurélio foi premonitório, mas apontarei, quase ao acaso, os que mais fortemente marcaram a evolução do nosso pensamento judicial, aprumando-o no rumo da sua humanização: o asseguramento da progressão dos condenados por crime hediondo, a inaceitação da prisão antes de esgotadas as chances recursais, a injustiça da prisão por dívidas… São apenas três os que anoto, mas está à disposição dos pesquisadores uma pletora de 30, de 300 ou três mil exemplares dessa sua corajosa visão futurística.

Esta data trintenária é para ser comemorada, não apenas pela sua afluência, o que já é, por si mesma, uma bênção de Deus, mas porque o seu decurso foi marcado pela permanência invariável de uma atuação firme e sobranceira do juiz que hoje se alça na admiração de todos, que nunca se afastou de seus sonhos, que perdeu com classe, venceu com ousadia, na crença daquela reflexão de Charles Chaplin de que o mundo pertence a quem se atreve.

 

*Cesar Asfor Rocha é advogado, jurista, escritor e compositor. Foi ministro (1992/2010) e presidente (2008/2010) do Superior Tribunal de Justiça, ministro e corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (2005/2007) e corregedor do Conselho Nacional de Justiça (2007/2008). É membro vitalício da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Fonte: site ConJur.