André Mendonça defende que a ação sequer deveria ser conhecida pelo STF. Foto: Gov.CE.

A Advocacia-Geral da União (AGU) defende no Supremo Tribunal Federal (STF) que a interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo vírus Zika é inconstitucional e representaria um retrocesso para a sociedade, já que a prática de aborto nesses casos viola frontalmente o direito à vida e a dignidade da pessoa humana protegidos pela Constituição Federal.

O plenário virtual do STF começou a discutir o assunto a partir da sexta-feira (24) no âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi nº 5.581) proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep).

A entidade alega que as políticas públicas de combate ao vírus Zika seriam omissas sobre a possibilidade de interrupção da gravidez e pede a legalização do aborto em mulheres infectadas pela doença “em função do perigo atual de dano à saúde provocado pela epidemia”.

Direito à vida

Em memorial encaminhado ao Supremo, contudo, o Advogado-Geral da União, André Mendonça, sustenta que a legalização afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos pilares da República Federativa do Brasil, bem como direito à vida, base dos demais direitos fundamentais protegidos pela Constituição.

O Advogado-Geral ressalta que, embora a criança infectada pelo vírus Zika possa apresentar danos neurológicos e limitações corporais, sua vida é viável e deve ser resguardada conforme expresso pelo artigo 5º da Constituição.

Mendonça lembra que o próprio Supremo já se posicionou, em julgamentos anteriores, no sentido de que a vida humana anterior ao nascimento deve ser protegida – no julgamento envolvendo as pesquisas com células-tronco embrionárias, por exemplo, o STF decidiu que somente nos casos em que o embrião in vitro seja inviável, não possuindo qualquer potencialidade de vida, está autorizada a sua utilização para pesquisas.

Na mesma direção, assinala o Advogado-Geral, o Supremo entendeu, durante o julgamento de ação que tinha por objeto a possibilidade de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, que a prática de aborto nesses casos não se caracterizaria como crime por se tratar de feto sem potencialidade de vida.

“No presente caso, de forma bastante distinta, não se trata de feto anencefálico, não se verifica a inviabilidade do embrião ou do feto cuja mãe tenha sido infectada pelo vírus Zika, mas a possibilidade de danos neurológicos e impedimentos corporais”, resume André Mendonça no memorial.

Sustentação oral

Como o julgamento da ação será feito em sessão virtual, ou seja, sem a presença física das partes ou dos ministros, o Advogado-Geral também encaminhou à Corte a gravação com sua sustentação oral. No vídeo, Mendonça argumenta que a ação sequer deve ser conhecida, uma vez que a Associação dos Defensores Públicos não possui legitimidade ativa para propor a ação, “já que se trata de uma associação de classe cujo objeto é defender os interesses da categoria, que não estão associados nem indiretamente ao objeto da ação”.

Sobre o mérito, o Advogado-Geral diz que a legalização do aborto, em casos de contaminação pelo vírus Zika, seria lamentável e representaria um retrocesso para a sociedade brasileira. “O deficiente físico no ventre materno tem potencialidade de vida. E não apenas o portador de Zika vírus. Os deficientes auditivos, os deficientes visuais, os portadores de síndrome de down. Aqui se trata do pedido do estabelecimento da ‘constitucionalização’ da segregação humana, tão presente, por exemplo, no regime nazista. Lamento que um pedido dessa natureza seja feito pela associação dos defensores públicos”, critica André Mendonça.

O Advogado-Geral também destaca que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, inserida no ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional. A convenção estabelece, entre outras coisas, que as crianças portadoras de deficiência devem gozar plenamente de todos os direitos e liberdades fundamentais em igualdade de condições e oportunidades com as outras crianças.

André Mendonça cita, ainda, trecho de uma nota técnica emitida pela Secretaria Nacional da Família, que alerta para o risco de eugenia na admissão da tese pelo aborto nos casos de Zika. “Estar-se-á a abrir espaço, no Brasil, a quaisquer possibilidades de aborto nas hipóteses em que sejam diagnosticadas quaisquer situações de deficiência da criança no ventre materno, ainda que em detecção sumária e sem 100% de certeza, o que é inadmissível e atenta contra a dignidade da pessoa humana, bem como atenta contra a especial proteção que o Estado deve conceder às famílias, nos termos do artigo 226 da Constituição”, assinala o trecho da nota.

Investimentos

Na ação, a Anadep também alega que as medidas e serviços disponibilizados pelo Estado para a prevenção e combate ao vírus Zika seriam insuficientes e que haveria omissão estatal violadora de preceitos fundamentais. Mas, conforme demonstrado pelo Advogado-Geral, o Ministério da Saúde vem adotando desde 2015 uma série de providências para o enfrentamento da epidemia causada pelo vírus Zika.

São ações direcionadas a investigar as causas, conter novos casos e manter a população informada, em âmbito nacional e internacional, além da edição de diversos atos normativos, entre os quais a portaria que instituiu o Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia e o ato que estabeleceu uma estratégia para o fortalecimento da atenção à saúde e da proteção às crianças portadoras de microcefalia, viabilizando o acesso a exames, consultas e tratamento especializado.

“O governo federal investiu mais de R$ 160 milhões no tratamento direto aos bebês e ampliou e fortaleceu a Rede de Cuidados às Pessoas com Deficiência, com o objetivo de melhorar o atendimento das crianças com microcefalia. Além disso, somente em ações relacionadas à busca ativa, diagnóstico e encaminhamento de crianças com suspeitas da síndrome aos serviços de saúde, o Ministério da Saúde investiu mais de R$ 15 milhões”, destaca o Advogado-Geral.

André Mendonça salienta que a efetividade das medidas adotadas pelo Ministério da Saúde fica evidenciada pela redução dos casos prováveis de Zika, que caíram 92,6% entre 2016 e 2017. “Essas políticas públicas foram cruciais para os resultados atuais. Segundo dados do Ministério da Saúde, em dezembro de 2015 foram registrados no país 514 casos da doença. Já em setembro de 2019 tivemos apenas um caso. E o último boletim epidemiológico reconheceu que atualmente o Brasil não aponta uma situação epidemiológica de risco para Zika vírus”, completa.

Diante da evidência de que o Poder Público tem implementado diversas políticas públicas no contexto do vírus Zika e da microcefalia, o Advogado-Geral afirma que a associação dos defensores públicos pretende com a ação é, na verdade, fazer com que a Suprema Corte atue como legislador positivo, criando uma nova disciplina legal e administrativa sobre a matéria.

“Tal pretensão é manifestamente incabível, porquanto acarretaria, nos termos da jurisprudência do próprio STF, verdadeira violação ao princípio da separação dos Poderes, uma vez que a atuação do Poder Judiciário, neste peculiar e emblemático caso, afrontaria a independência conferida ao Executivo e Legislativo para o exercício de suas funções constitucionalmente previstas”, assinala.

Perda do objeto

A Anadep também questionou dispositivos da Lei nº 13.301/2016, que trata da adoção de medidas de vigilância em saúde relativas ao vírus Zika. O principal ponto questionado é o artigo 18, que  dispõe sobre o benefício de prestação continuada à criança acometida por microcefalia.

No entanto, conforme demonstrado pelo Advogado-Geral, o artigo que dispunha sobre o benefício de prestação continuada foi integralmente revogado pelo artigo 6° da Lei nº 13.985, de 7 de abril de 2020, que também estabeleceu uma renda mensal vitalícia de um salário mínimo a todo portador de microcefalia nascido entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2019. Segundo André Mendonça, também por esse motivo o pedido feito na inicial não merece sequer ser conhecido pelo STF.

“Diante da revogação da norma e da ausência de aditamento ao pedido previamente à inclusão do feito em pauta de julgamento, parte do objeto da pretensão inicial já não mais subsiste, revelando-se inviável o controle abstrato de constitucionalidade do dispositivo. Dessa forma, por todo o exposto, a AGU pede, preliminarmente, o não conhecimento da ação e, no mérito, a sua improcedência total”, conclui.

Fonte: site da AGU.