Advogado Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do STJ. Foto: Agência Brasil.

A imprevisível – inimaginável, mesmo – crise que o coronavírus impôs à sociedade em sua universalidade, e a cada indivíduo isoladamente, de que decorreu a necessidade de súbita e radical mudança de comportamento, tanto nas relações sociais e familiares, como na própria atitude de cada um de nós diante da vida e de nós mesmos, deixou-nos todos atônitos, perplexos, sem saber como agir agora, e muito menos a imaginar como será o amanhã, o day after, quando desaparecer o que hoje tanto nos aterroriza.Vivíamos compelidos e emocionalmente formatados para priorizar compromissos sociais e profissionais em círculos que pouco ou quase nada nos diziam respeito, com pessoas sem vivências antecedentes conosco e que frequentávamos pelo falso deslumbramento de que nosso valor e prestígio no mundo circundante é aferido pelo recheio de nossa agenda de compromissos, pelo volume de nomes que integram os nossos contatos.

De repente, as pessoas que estavam habituadas e ofuscadas a circular livremente pelos espaços da cidade e a freqüentar locais de grande concentração de outras pessoas igualmente livres, viram-se impactadas e impelidas a se confinarem em suas casas e a se absterem de suas costumeiras práticas espontâneas.

Nenhum de nós esperava tal reviravolta de costumes e também não estimava a gravidade dessa pandemia que se abateu sobre a humanidade, forçando-nos a todos a adotar condutas e comportamentos dantes sequer cogitados.

A segregação que foi imposta a todos, como estratégia de controle do espraiamento da pandemia, que aparentemente nos isolou, por um lado abriu-nos à reflexão para perceber a fragilidade de nossas vidas, a precariedade dos meios de defesa contra crises na saúde pública e também a incúria com que eram tratados esses temas, que agora batem às nossas portas e nos assustam com a sua virulência que parece zombar de nossas providências acauteladoras. Mas, por outro lado, nos fez trazer a  presença de muitos relevantes fatos de nossas vidas e que estavam guardados e esquecidos nos escaninhos de nossas memórias, como também a lembrança de pessoas queridas que marcaram presenças relevantes na nossa existência e que a vida atribulada cuidou de descartar.

Percebe-se, assim, que essa segregação não significa automático isolamento, porque pode nos levar à reflexão sobre a nossa própria vida e a vida de muitos dos nossos parceiros com quem tivemos proximidade ao longo de nossa existência, muitos e muitos dos quais a memória involuntariamente já os deletou. Nós, que não tínhamos tempo para refletir e encontrar conforto na meditação, vemo-nos agora com tempo de sobra para essa atividade mental tão necessária e saudável, que a grande maioria jamais teve tempo para experimentar, e que para quase todos os demais era praticamente esquecida, inclusive dentro dos nossos lares e na troca afetiva com os nossos mais próximos.

Segregados em espaços restritos, vemos crescer vertiginosamente o uso intensivo da comunicação virtual e sentimos como a convivência com os nossos iguais é um elemento essencial da felicidade e assim podemos imaginar que perdê-la pode nos levar à solidão sem remédio e ao desespero. O confinamento segregador e lesionador levaria o ser humano a despojar-se do que ele tem de mais precioso: a sua afetividade natural, a sua capacidade de sentir-se envolvido no pertencimento convivencial com os seus semelhantes, tanto nas suas angústias, como nas suas alegrias.

Nesse sentido, a crise do coronavírus é mais do que uma advertência: é um alerta oportuno e uma oferta alentadora para que reflitamos – todos nós, cidadãos comuns e autoridade, homens e mulheres do povo – como é urgente o despertar para a solidariedade afetiva e efetiva, a alteridade consciente e eficaz, tanto nessa desafiadora luta que temos agora pela nossa frente, como, também, no tempo seguinte, de recuperação emocional, social e econômica que nos espera.

A nossa resistência está sendo testada ao máximo, mas a nossa força e obstinação – com a ajuda de Deus – obterão a vitória contra esse desafio que parece invencível. Afinal, não foi somente com a ajuda de Deus que Davi, pequeno e frágil, vitoriou contra um gigante?

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*Cesar Asfor Rocha, advogado, jurista, escritor e compositor, foi ministro (1992/2010) e presidente (2008/2010)  do Superior Tribunal de Justiça, ministro e corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (2005/2007) e corregedor do Conselho Nacional de Justiça-CNJ (2007/2008). Membro vitalício da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Do site Migalhas.