Filomeno Moraes: Cientista Político, Professor da UNIFOR e da UECE, Doutor em Direito na USP, mestre IUPERJ. Foto: Ares Soares – JPG

Glenn Greenwald, o jornalista do sítio “The Intercept Brasil”, em matéria publicada no dia quinze último, denominou “terremoto político no Brasil causado pelas nossas (sic) progressivas exposições” a situação decorrente das conversas especiosas supostamente travadas entre o então juiz Sérgio Moro e membros do Ministério Público Federal.

De fato, começaram a vir a público, continuando em conta-gotas, as tais exposições, com capacidade de erodir, no mínimo, a força moral das mais simbólicas decisões judiciais atinentes à Operação Lava-Jato. De logo, surgiram, sobretudo nas redes sociais, exércitos belicosos brandindo narrativas maniqueístas, ou tentando colocar a situação no “não vi nada demais” do próprio Moro ou no não deixar pedra sobre pedra do apurado pelas delegacias de polícia e varas criminais. Pior para os que, buscando não fugir da racionalidade e reconhecendo a gravidade da matéria, de imediato recebem a pecha de favorável à corrupção ou favorável aos desmandos do sistema de justiça.

A catarse por que o país passou nos últimos anos trouxe à luz as entranhas de um modo de fazer política – em grande medida mais próprio de uma sociedade oligárquica e incompatível com os diversos ganhos de modernidade da sociedade brasileira – de trocas entre os poderosos e os estratos das classes subalternas, por meio do clientelismo, explícito ou maquiado, e entre os poderosos e outros poderosos. No último caso, espraiando-se por lideranças e partidos políticos de diversas extrações, vários mecanismos de gangsterismo político e econômico tornaram-se moeda corrente. Destarte, o combate à corrupção constituiu-se numa considerável vantagem comparativa.
Todavia, agora, as “exposés” permitem o diagnóstico, segundo o qual, se a república padece de muitos déficits, a democracia brasileira sofre, entre outros males, daquilo que Norberto Bobbio denominava o “poder invisível”, uma das promessas não cumpridas da democracia. A crer nas exposições de “The Intercept Brasil”, princípios e regras constitucionais e legais foram abandonados em nome do combate à corrupção oriunda das relações incestuosas entre a classe política e certos estratos sociais e econômicos. , em conluio para a apropriação privada de bens públicos por aqueles de quem se espera comportamentos escorreitos no fazer da jurisdição.

A primeira impressão é a de que, na tentativa de realizar a república, menosprezou-se a democracia. Assim, valores constitucionais foram jogados na vala de comportamentos subversivos da república, da democracia e do Estado de direito. Os fatos vindos à tona, indecorosos ou criminosos, fazem lembrar a cautela sempre tomada pelos pais fundadores do liberalismo político e tão bem formulada na síntese de Montesquieu, segundo o qual a experiência histórica demonstra que quem tem o poder tende a dele abusar, complementada pela sentença do Lorde Acton, para quem, se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.

Segundo a “lição dos clássicos”, é corrupção o que as exposições de Greenwald trouxeram à luz. Não a corrupção combatida pela Operação Lava-Jato, mas outra modalidade terrível de corrupção, a do Estado do Estado Democrático de Direito, alicerçado na trintona Constituição Federal. Ainda numa primeira aproximação, magistrado e procuradores da República assenhorearam-se uma quantidade de poder invisível incompatível com a regular atividade de defesa social e de julgar. Não bastara o poder que o Judiciário e o Ministério Público obtiveram constitucionalmente, que os transforma em instituições com poderes tais, não observáveis nos seus congêneres em democracias avançadas, além do mais potencializados por diversas formas de ativismo. A ânsia absolutista transformou-se real, com pulsões de tanta envergadura a justificar a boutade brechtiana conforme a qual bem-aventurado é o povo que não tem heróis.

A corrupção do poder é, assim, algo a mais no caldeirão de dificuldades do Brasil, para o que pode-se invocar os riscos que a literatura mais recente sobre a democracia ressalta, quais sejam os riscos, mortalidades, rupturas, cansaços, entre outras mazelas. Nestes tempos de boçalidade política, fantasmas de ingovernabilidade, surge, pois, um fantasma a esconjurar: a corrupção da democracia e da república pelo abuso do poder e do poder invisível.

Artigo publicado nesta data, 19 de junho, no site Segunda Opinião