O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante entrevista, após reunião com o presidente,Jair Bolsonaro. Foto: Agência Brasil

Em razão da importância social e repercussão jurídica, a votação de qualquer projeto de lei que altere o processo penal deverá ser precedida de um amplo debate. O que não está ocorrendo no “pacote anticrime” apresentado pelo Ministério da Justiça, e defendido pelo chefe da pasta, Sergio Moro. A cobrança por um debate amplo foi feita pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em parecer entregue nesta segunda-feira (20) ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. No documento, a OAB reforçou que a proposta de Moro possui diversas inconstitucionalidades.

“Há convergência total por parte da comunidade científica de que a proposta do Ministério da Justiça não foi precedida do indispensável debate público que se esperava em um projeto com esse impacto sobre o sistema penal, processual penal e penitenciário”, diz trecho do documento, relatado pelos conselheiros Juliano Breda e Ticiano Figueiredo. O parecer foi aprovado por unanimidade no Conselho e contou com a contribuição de dezenas de estudiosos de direito penal, processo penal, criminalistas e entidades diversas, e apoia-se em dois grandes eixos.

A entidade afirma que praticamente todas as abordagens doutrinárias a respeito das propostas do governo federal, recebidas pelo Conselho Federal e até então divulgadas publicamente, partem de uma crítica comum.

Para a OAB, não existe uma exposição de motivos detalhada e aprofundada das causas que motivaram as propostas, dos estudos técnicos que as amparam e, em especial, de uma análise cuidadosa a respeito das consequências jurídicas, sociais e econômicas de eventual aprovação integral do projeto. “Por exemplo, em relação as medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância, ou seja, a prisão antes do trânsito em julgado, a entidade rejeita a proposta em razão de manifesta inconstitucionalidade”, diz trecho do documento.

 

Alterações

Segundo a OAB, o projeto pretende ainda criar duas alterações de impacto sobre os processos de competência do Tribunal do Júri, permitindo-se a execução antecipada das penas logo após a decisão de condenação e retirando-se o efeito suspensivo do recurso contra a decisão de pronúncia.

“O Grupo de Trabalho do Conselho conclui pela inconstitucionalidade da proposta de execução da pena após a decisão do Tribunal de Júri e pela rejeição da proposta de retirada do efeito suspensivo da pronúncia, aderindo à proposta de Alberto Toron, para, alternativamente, sugerir que se estabeleça um prazo razoável para a decisão do Recurso em Sentido Estrito pelo Tribunal”, afirma a OAB.

A proposta de supressão dos embargos infringentes produzirá, essencialmente, decisões injustas, segundo a entidade, que também rejeita a proposta. “Aliás, é paradoxal pretender-se retirar o efeito suspensivo dos recursos aos Tribunais Superiores ao lado da extinção de hipóteses de recurso também no julgamento em segunda instância, evidenciando o descompromisso com o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional”, frisou a entidade.

 

Fixação da pena

O projeto prevê a imposição automática de regime inicial fechado em algumas hipóteses, como no caso de “condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”.

“A proposta colide não apenas com o texto do artigo 33 do Código Penal, que dispõe critérios que viabilizam a materialização da garantia constitucional da individualização da pena, que, pois, acaba violada, como, ao mesmo tempo, confronta a jurisprudência pacífica do tema. Isso porque a obrigatoriedade do regime fechado como regra para os delitos previstos viola a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito dos crimes hediondos”, aponta o parecer.

Citado, o jurista Lenio Streck afirma que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a inconstitucionalidade da fixação a priori do regime de cumprimento da pena para qualquer delito, uma vez que estaria configurada afronta à garantia constitucional de individualização da pena.

“Mesmo que hajam exceções previstas no projeto de lei, que é o que diz o ministro quando questionado acerca da (in) constitucionalidade, ainda assim seriam exceções fixadas a priori, e, sendo fixadas de forma antecipada, configurariam, do mesmo modo, afronta à individualização, que exige, por óbvio, para a fixação do regime do cumprimento da pena, a análise circunstancial do caso concreto e da conduta delitiva de cada réu”, explica Streck.

 

Acordo de não-persecução

O Ministério da Justiça propõe a inclusão do Código de Processo Penal do chamado “acordo de não-persecução”. Para o criminalista Alberto Toron, citado no parecer, é bem-vindo o acordo. Entretanto, para Toron, é descabida a exigência de “confissão circunstanciada” do agente em razão de o acordo não ter natureza condenatória. “O instituto deveria ser alçado à condição de direito processual público de natureza subjetiva. Não externada a proposta pelo MP, o interessado poderia requerer o benefício ao juiz que decidirá a respeito, com direito a recurso das partes”, avalia o criminalista.

A entidade constatou que esse tópico do projeto de lei, embora contenha imperfeições, não destoa da correta política criminal de conceder maior efetividade às soluções consensuais no processo penal, em especial às infrações de menor potencial ofensivo, cometidas sem violência ou grave ameaça.

“Diante de todas as contribuições recebidas, a OAB não se opõe ao aprofundamento da discussão sobre a incorporação ao sistema processual do instituto da “não persecução”, ou seja, da ampliação do instituto da transação penal a crimes com penas não superiores a quatro anos, sem as restrições objetivas apontadas, e que o benefício se constitua em “condição de direito processual público de natureza subjetiva”, na linha da defesa de Alberto Toron.

 

Acordo Penal (plea bargaing)

Lenio Streck, após apontar a evidente assimetria no eixo de poder negocial entre acusação e defesa, sugere importantes alterações para a constitucionalização do plea bargain.  “Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o Código de Processo penal e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa”, diz o jurista.

O advogado Fabio Tofic Simantob, por sua vez, sugere que “qualquer modelo adotado no Brasil deve conter limite máximo de pena a partir do qual não será permitido o acordo, e a proibição de cumprimento de pena em regime fechado e em semiaberto, este último permitido apenas nos crimes com pena superior a oito anos”.

 

Gravação de conversa 

A gravação de conversa entre advogado e cliente preso, segundo a entidade, é uma proposta que atenta gravemente contra o direito de defesa. O Estatuto da Advocacia e da OAB estabelece os pressupostos legais para o afastamento da confidencialidade das comunicações entre advogado e cliente.